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São Paulo, domingo, 22 de junho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Carreiras atropeladas

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI



É fácil fazer aflorar o preconceito de que os funcionários públicos são vagabundos e privilegiados


Preocupa a maneira ríspida e exaltada com que o governo Lula está reagindo à malcriada reação dos servidores públicos à reforma da Previdência. Que esses servidores têm recebido vantagens inadmissíveis num Estado justo e moderno, que as classes médias, no mundo inteiro, estão sendo oprimidas pelo feroz capitalismo contemporâneo, tudo isso é sabido. Mas não é fazendo com que engulam pela goela abaixo esse fantástico arrocho que as melhores soluções políticas serão encontradas.
Nada parece mais adequado que o ministro José Dirceu fazer convergirem no Congresso Nacional as negociações sobre a reforma da Previdência. Por definição, não é ali que devem se entender as diversas partes interessadas de uma sociedade? Basta, porém, atentar para a maneira como o governo tem cooptado sua maioria no Congresso para perceber que a manobra visa cercear o diálogo e impor a reforma tal como ela já está configurada. O governo só pretende tolerar mudanças cosméticas.
No entanto esse projeto de reforma tem o vício de redesenhar o funcionalismo sem levar em conta a especificidade das carreiras de Estado. Todos nós sabemos que a reforma é absolutamente necessária, que ceder em muitos pontos pode resultar numa colcha de retalhos, desvirtuando o sentido do projeto. Mas, também, se o governo não ceder em nada, considerando-se a instabilidade das decisões do Congresso, acostumado a ora dar no prego, ora na ferradura, pode transformar os serviços públicos num monstro de sete cabeças.
Veja-se a fortíssima pressão do Poder Judiciário para ficar fora da reforma. No final das contas, não se trata apenas de equilibrar despesas e receitas, de cortar privilégios escandalosos de que gozam certos funcionários. É um abuso o funcionário se aposentar precocemente, o inativo receber mais do que o servidor da ativa, que integre no seu salário vantagens temporárias e assim por diante. Mas, para corrigir essas distorções, não cabe esquecer que se está redesenhando o mapa do funcionalismo público, logo, do funcionamento do próprio Estado.
Diante das resistências que se avolumam, o presidente Lula se exalta e resvala para o populismo. Tem carradas de razão ao reclamar das aposentadorias precoces dos funcionários mais qualificados, mas perde o pé quando declara: "Não posso aceitar que alguém se aposente com R$ 17 mil por mês, se 40 milhões não têm oportunidade de trabalhar" (Folha, 18/6/03). Quem não se revolta diante dessa exclusão? Quem não lamenta a vergonhosa distribuição de renda do país? Infelizmente, nada disso vai desaparecer por decreto e, se quisermos fazer com que diminuam as diferenças, será preciso reaparelhar o Estado, dotá-lo de instrumentos para, ao menos, compensar as desigualdades inerentes ao desenvolvimento capitalista. Como reforçar, porém, esse Estado sem formar uma burocracia estável e competente?
Por mais escandalosa que seja a diferença entre os baixos e os altos salários pagos no Brasil, com salários medianos só teremos funcionários medianos, os melhores talentos orientando-se para o setor privado. Não há dúvida de que nem todos têm a disposição para competir no mercado, que ainda há pessoas imbuídas do espírito público, mas elas nada podem fazer se o sistema criar forças que as expulsem dele.
Num artigo muito revelador, publicado nesta Folha, Luiz Nassif comparou os currículos dos presidentes dos bancos centrais estrangeiros e brasileiros e mostrou que a maioria dos estrangeiros provém da própria burocracia estatal, enquanto os brasileiros são cooptados nas instituições financeiras privadas. Não é de esperar que esses funcionários "ad hoc" vejam a economia sobretudo do ponto de vista financeiro, deixando de lado seu funcionamento real? Além do mais, tem sido uma constante economistas trabalharem no setor público contentando-se com baixos salários, por considerarem essa situação uma espécie de investimento, qualificando-os para posições superiores nas empresas privadas. Em resumo, só teremos uma burocracia estável e competente se ela for remunerada por salários razoáveis.
A definição dos tetos é outra ameaça. Como está, inviabiliza o serviço em regime de tempo integral e retalha a burocracia nacional em compartimentos estanques. Já foi um erro submeter todos os funcionários a um regime único, mas estratificá-los conforme servem a este ou aquele poder ou a este ou aquele Estado me parece erro ainda maior. É a proposta da Comissão de Constituição e Justiça para resolver a difícil questão dos tetos dos vencimentos superiores. Diversidade aplaudida pelo governo e enaltecida pelos governadores "et pour cause". Já a Constituição de 88 distingue os tetos federais dos tetos estaduais, mas cuida para que os funcionários possam circular entre os poderes, ao determinar que "os vencimentos dos cargos do Poder Legislativo e do Poder Judiciário não poderão ser superiores aos pagos pelo Poder Executivo" (art. 37, XII).
É sabido que os salários, aposentadorias e pensões do Poder Judiciário são muito mais elevados que os do Executivo, já que o primeiro possui capacidade de voz e de pressão muito superior à dos outros dois poderes. No entanto a multiplicação dos tetos simplesmente legaliza essa diferença e termina por feudalizar o Estado. Por que um planejador ou um pesquisador de um Estado cujo governador, instalado em seu palácio, faz voto de pobreza não podem ganhar mais do que ele? Por que gravar na Constituição essa exigência? Se há que reformá-la, não seria melhor conceder aos Estados a tarefa de definir suas próprias políticas salariais? Como está, a proposta da comissão acarretará, como um dos efeitos perversos, o reforço das fundações universitárias, com suas próprias escalas salariais, muito diferentes daquela que vale para a universidade. Isso, segundo o pensamento petista, não terminaria por privatizar essa mesma universidade? E a pesquisa básica, impossível de ser realizada nas fundações, seria relegada ao fundo do poço?
Não há dúvida de que os funcionários são trabalhadores como quaisquer outros, não podendo ser beneficiados com vantagens escandalosas; mas também não há dúvida de que, num país dilacerado por uma distribuição de renda das mais injustas, eles não devem servir de alavanca para corrigir essa injustiça. É fácil fazer aflorar o preconceito de que os funcionários públicos são vagabundos e privilegiados e se aproveitar dele para resolver problemas de caixa. Fernando Henrique Cardoso pagou caro por uma frase infeliz; Lula nos fará pagar caro por seu próprio preconceito?

José Arthur Giannotti, filósofo, é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).


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