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São Paulo, domingo, 22 de junho de 2003

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A utopia da paz

BETTY MILAN


A nova ordem desmentiu a idéia de que o país mais potente da terra é uma potência ética, um modelo de submissão à lei


A guerra contra o Iraque é a prova de que não se pode chegar à paz através da guerra. Terminada aquela, o FBI alertou para o risco de ações da Al Qaeda. Os EUA subiram de amarelo para laranja o nível de alerta para possíveis ataques ao país (o nível laranja é o segundo mais grave na escala de cinco pontos). EUA, Reino Unido e Alemanha fecharam suas representações diplomáticas na Arábia Saudita. Em menos de dez dias, houve atentados terroristas em Marrocos e na Arábia Saudita, além de cinco outros em Israel. O desejo de vingança e o medo se espraiaram. Viajar para o Oriente Médio se tornou temerário e o número de vôos para os EUA diminuiu consideravelmente.
A nova ordem mundial é de uma ONU desautorizada por uma guerra ilegal, de uma potência como os EUA vista como infratora e de populações para quem não há mais garantia de paz e o perigo está em toda parte -não só porque o terrorismo existe, mas porque somos vítimas do nosso imaginário. A nova ordem convida a não sairmos do lugar e a sabermos do mundo através do jornal e da televisão. Acuados e controlados pela mídia.
A ONU, como diz Arundhati Roy, escritora pacifista indiana, foi retrogradada. Apesar dos altos salários, está rebaixada à condição de zeladora "ou arrumadeira filipina, "jamardani" indiana, noiva por correspondência tailandesa, faxineira mexicana, serviçal jamaicana. Usada para limpar a merda dos outros".
À retrogradação da ONU correspondeu a degradação do governo americano, que invocou a legítima defesa preventiva para atacar o Iraque -como se esse recurso existisse. Transgrediu a legalidade internacional e foi associado à delinquência. Suas iniciativas a favor da paz fazem a palavra impostura ressoar.
Nem por isso os americanos são assassinos, como querem os que se exercem facilmente no insulto racista e deveriam se lembrar dos milhares de cidadãos que, nos EUA, manifestaram-se contra as armas nucleares. As críticas mais eruditas e mais engraçadas a Bush são feitas pelos seus conterrâneos.
Os americanos não são assassinos, como os muçulmanos não são terroristas, porém a nova ordem desmentiu a idéia de que o país mais potente da terra é uma potência ética, um modelo de submissão à lei. Convida os povos a se dessolidarizarem dos governos, mostra que há menos afinidade entre as pessoas de uma mesma nação do que entre os pacifistas de diferentes nacionalidades e reforça a corrente de solidariedade mundial. Dessa corrente poderia surgir a organização das sociedades civis unidas, cujo texto fundador não afirmaria, como o da ONU, que ela "existe a fim de instituir métodos para garantir o uso das armas no interesse comum", e sim que "existe a fim de instituir métodos para que a força das armas não seja mais usada e a solução dos conflitos seja alcançada através da negociação". O recurso à palavra, então, seria decisivo; a cultura privilegiada e o humanismo voltariam a contar.
Uma utopia que se torna ainda mais evidente se consideramos que a guerra tem sido a principal atividade dos Estados nacionais nos 500 últimos anos -por ser inerente ao capitalismo, indissociável do jogo de trocas. Assim, no período entre 1480 e 1800, houve uma guerra a cada dois ou três anos. De 1800 a 1940, houve uma a cada um ou dois anos e, depois de 1945, uma a cada 14 meses. Dados alarmantes, porém menos do que os relativos ao número de mortos por causa da guerra nos três últimos séculos: 4 milhões no século 18; 8 milhões no século 19; e 115 milhões no último século.
Precisamente por ser tão utópica, a idéia do desarmamento global e da solução exclusiva dos conflitos pela negociação precisa ser levada a sério. Quanto mais investirmos nela, menos concebível a guerra se tornará. Daí a importância dos movimentos pacifistas e de uma educação orientada para a paz.
A fim de que as gerações futuras possam imaginar um sistema econômico que não seja contrário à vida, é preciso que a possibilidade da guerra seja banida do nosso imaginário. Noutras palavras, é preciso recusar a paixão do ódio e ensinar essa recusa na escola.

Betty Milan, escritora e psicanalista, é autora de "A Paixão de Lia", entre outros livros.


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