São Paulo, terça-feira, 22 de junho de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

A obra

Pensar pequeno parece hoje no Brasil marca de realismo. Pensar pequeno, porém, é incompatível com as iniciativas necessárias para soerguer o país. Proponho dois raciocínios que convergem para o mesmo desfecho.
As renovações mais bem-sucedidas do século passado ocorreram na Europa sob o nome de social-democracia e nos Estados Unidos sob a égide do "New Deal" de Roosevelt. A experiência do "New Deal" é exemplar tanto pelo que se fez quanto pelo que se deixou de fazer. Garantiu os americanos contra os extremos da insegurança social produzida pela instabilidade econômica. De nada teria adiantado o compromisso social, porém, sem a recuperação econômica. E o que recuperou a economia americana, dobrando o PIB em quatro anos, não foi qualquer política econômica. Foi a guerra. A mobilização guerreira dos recursos nacionais juntou-se à socialização seletiva da economia para democratizar e desenvolver o país. Não temos guerras à vista. Bastaria essa diferença para demonstrar a impropriedade de uma estratégia nacional que se contente em imitar a social-democracia dos países ricos. Daí por que me venho batendo por um projeto que ao mesmo tempo mobilize os recursos nacionais -economia de guerra sem guerra- e ancore o compromisso social na democratização das oportunidades para estudar, trabalhar e produzir.
O segundo raciocínio vai na mesma direção. Em quais dos países latino-americanos teria o neoliberalismo -a imitação das instituições da economia de mercado dos países ricos e sobretudo dos Estados Unidos- os maiores benefícios e as menores desvantagens? A resposta paradoxal é: Costa Rica e Cuba, dois pequenos países tornados mais igualitários, num caso por um capitalismo pequeno-burguês e, no outro, por um estatismo despótico. E em quais seria a orientação neoliberal mais prejudicial e ineficaz? Nas nações latino-americanas maiores e mais desiguais -o Brasil e o México. Nesses países, a orientação neoliberal predominante continuará a ser o que é agora: o rótulo de nova divisão social, excluindo a maioria da população de capacitações e de acessos. A economia de mercado não cria seus próprios pressupostos. Floresce em ambiente marcado por descentralização de oportunidades de estudo e trabalho e pela atuação de um Estado relativamente independente de influências plutocráticas. O mercado é impotente para preencher seus próprios requisitos; num quadro de grandes desigualdades, precisa ser reinventado, em sua forma institucional, para poder, de fato, existir para a maioria. É por isso que luto por um projeto que democratize a economia de mercado entre nós e construa as bases desse mercado democratizado: instituições econômicas que associem o Estado e a iniciativa privada para vencer as inibições do atraso e multiplicar acessos a crédito, tecnologia e conhecimento; instituições políticas que inaugurem democracia de alta energia, capaz de romper os vínculos entre o poder e o dinheiro, estimular o engajamento cívico e facilitar as mudanças estruturais; ensino analítico e capacitador, que dê braços e asas a nosso engenho.
O maior obstáculo ao avanço dessa campanha transformadora não é econômico nem político. É a idéia apequenada que fazemos de nós mesmos. Destruir essa idéia e substituí-la por outra, de grandeza, é nossa tarefa e minha obsessão.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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