São Paulo, terça-feira, 22 de junho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Uma nova Cruzada?

NILTON FREIXINHO

Mil anos depois, retorna ao palco o confronto entre o Ocidente cristão e o mundo árabe islâmico. Eis uma constatação que não pode ser desprezada. Os cientistas sociopolíticos nos ensinam que, para compreender os acontecimentos históricos, mister se faz apreciá-los no longo prazo.
Os episódios de 11 de setembro de 2001 e de 13 de março de 2004, bem como a "guerra" ora em curso no Iraque, só ganham compreensão ao remontarmos ao choque armado entre o Ocidente e o levante (no próximo Oriente e Oriente Médio a partir do ano de 1095).
Tudo começou antes. É temerário observar episódios de forma isolada. Urge buscar uma compreensão da ordem subjacente dos acontecimentos históricos. Para isso, é compensador, nos dias de hoje, compulsar os compêndios da história universal e se situar no drama das Cruzadas, do cristianismo versus o islamismo, nos séculos 11 e 12. Não vamos aqui rememorá-lo. Mas isso é fundamental para termos uma visão abrangente do movimento da história. Procuraremos tão-somente caracterizar as motivações dos atores envolvidos nesse choque entre o Ocidente cristão e o levante islâmico.
Nos séculos 11 e 12, as motivações que alimentavam o choque em questão eram diferentes das que promovem o choque nestes séculos 20 e 21. Há, entretanto, um denominador comum, que se situa no campo da religião e, conseqüentemente, no campo cultural. Nos séculos 11 e 12 havia razões religiosas -o empenho do Ocidente cristão de preservar os lugares santos em que viveu Jesus Cristo. Todavia naquela época havia também uma motivação de ordem econômica. Os países do Ocidente lutaram para manter abertas as rotas comerciais para o Oriente através do levante, vencendo as barreiras levantadas pelos turcos seljúcidas, povos muçulmanos e, posteriormente, pelos árabes muçulmanos, sob a liderança de Norondin e Saladino.


Toda a Europa cristã ocidental de hoje está militarmente vinculada à guerra ao islamismo


Eis por que todos os países da Europa Ocidental cristã formam então uma coligação contra os islâmicos do levante -invadem e procuram manter ali uma cabeça-de-ponte estratégica, visando seus propósitos.
Hoje, persistem as motivações de ordem religiosa, que, no enfoque dos islâmicos, no entendimento do líder terrorista árabe Osama bin Laden, situam-se na área da cultura. Mas hoje há também razões de ordem econômica no confronto do Ocidente com o levante. É sabido que no Oriente Médio situa-se a mais rica área petrolífera do planeta. Isso cresce de importância quando se leva em conta que as jazidas de petróleo em território norte-americano estão praticamente exauridas.
Chegamos ao ponto que este artigo pretende aflorar com clareza: os acontecimentos em curso no Iraque representam uma atitude unilateral dos EUA ou traduzem um movimento que coliga os países do Ocidente cristão contra o levante islâmico, cujos povos estão ansiosos pelo ressurgimento, no mundo, da cultura árabe islâmica, após haver hibernado por cerca de cinco séculos?
Não é difícil comprovar a segunda hipótese da questão formulada. Sem mencionarmos a Inglaterra, co-participante da invasão do Iraque em 2003, hoje mantendo um contingente de cerca de 12 mil militares no país invadido, é instrutivo examinar a contribuição militar de outros países europeus na ocupação do Iraque, embora alguns deles tenham se manifestado contrários à invasão, em 2003.
Finlândia: contingente de 42 militares. Suécia, 46. Noruega, 391 (inclui a área do Afeganistão). Dinamarca, 595 (inclui a área do Afeganistão). Alemanha, 1.833. Holanda, 1.124. Bélgica, 280. França, 536. Espanha, 1.418 (inclui a área do Afeganistão). Itália, 3.489 (inclui o Afeganistão). Grécia, 167. Estônia, 62. Letônia, 131. Lituânia, 107. Polônia, 2.418 (inclui o Afeganistão). República Tcheca, 109. Eslováquia, 189. Hungria 313. Romênia, 427.
O exame dessa participação militar, embora em termos talvez simbólicos, dos países europeus do Ocidente cristão na ocupação do Iraque, invadido pelos EUA e pela Inglaterra em 2003, revela de forma eloqüente que toda a Europa cristã ocidental de hoje está militarmente vinculada à guerra ao islamismo, tal como aconteceu na época das Cruzadas.
Deixo ao leitor a formulação de inferências que possam demonstrar estarmos, nos dias de hoje, em novo confronto generalizado entre o Ocidente cristão e o levante islâmico -principalmente considerando a decisão do governo socialista espanhol, alçado ao poder em eleições realizadas no momento em que ecoavam, no país, as dramáticas conseqüências do brutal ato de terrorismo islâmico do 13 de março. De imediato, com apoio popular, foi determinado o retorno à Espanha do contingente militar enviado ao Iraque pelo governo anterior, sabidamente ligado à política das nações ocidentais, no quadro conjuntural do levante.
Seria plausível a hipótese de uma cisão no Ocidente? Vale especular.

Nilton Freixinho, 85, historiador, é coronel reformado do Exército.


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