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São Paulo, terça-feira, 22 de julho de 2003

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

A misteriosa reforma da Previdência

Por que empenhou o governo toda sua força em reforma da Previdência? Reforma que faz muito sentido à luz das idéias que circulam nos países do Atlântico norte, mas pouco sentido à luz das realidades do Brasil.
Por mais que se repita que a Previdência está falida, estudo objetivo mostra o contrário. Não há rombo nas contas da Previdência, nem na Previdência dos servidores, nem na dos trabalhadores em geral, a não ser por manipulação contábil: isto é, se se debitam nas contas da Previdência, transferências sociais (como a chamada aposentadoria rural, que é ajuda, muito bem-sucedida, a pobres) ou retenções de fundos destinados a outros objetivos, como o de pagar juros da dívida pública.
Os Estados enfrentam problemas de peso com o regime previdenciário atual. Teriam de ser acertados dentro de renegociação, inclusive tributária, do pacto federativo. As dificuldades dos Estados, porém, não movem a reforma. São apenas aproveitadas para impô-la.
Como quase tudo no Brasil, a Previdência está cheia de injustiças. Eleger, porém, como a maior injustiça no país o tratamento especial de quem serve ao Estado e renuncia a algumas oportunidades em troca de outras garantias revela falta de realismo social e de equilíbrio moral. O desenvolvimento democratizante não pode começar com guerra contra a classe média nem com enfraquecimento das carreiras de Estado.
Há lugar para reforma da Previdência em projeto arrojado de soerguimento do Brasil. Só que exigiria a formação de regime público de capitalização que mobilizasse a poupança de longo prazo para o investimento de longo prazo, atenuando nossa dependência do capital estrangeiro.
Deu-se primazia a uma pseudo-reforma da Previdência por três razões. Em primeiro lugar, para demonstrar confiabilidade aos mercados financeiros. Em segundo lugar, porque aos assessores que sopram nos ouvidos dos políticos falta ideário que não seja esse, de fiscalismo confuso sobre seus próprios alvos. O tempo que o movimento político vitorioso deveria ter usado para definir prioridades sérias foi gasto em truques de marketing. O vazio acabou preenchido por formulário universal e importado. Em terceiro lugar, porque, na pressa de desfazer-se de sua base tradicional nos setores organizados de classe média, demonizados como corporativistas, o governo do PT fabricou novo projeto de base: aliança, no estilo do bonapartismo tropical, entre os famintos e os endinheirados, entre os que não têm emprego e os que não precisam ter, contra os interesses do trabalho e da produção.
Tal é o fogaréu de ilusões em que se consomem precocemente a identidade e o poder de um governo de que o Brasil esperou e ainda espera tanto. Nada de subordinar as exigências da confiança financeira às necessidades da economia real. Nada de resgatar os dois terços de trabalhadores que penam no purgatório da informalidade, lutando para assegurar a todos carteira de trabalho. Nada de acabar com a prática dos governos de se acertarem, em troca de financiamento eleitoral, com os grandes empresários, que esvazia e corrompe a democracia brasileira. Nada de construir o ensino público de qualidade que daria olhos e asas a nosso engenho. Tudo "para inglês ver". Nada para brasileiro ser.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.

www.law.harvard.edu/unger


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