São Paulo, terça-feira, 22 de agosto de 2000


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MARCELO LEITE

O risco dos vírus emergentes

A revista científica "PNAS" (www.pnas.org), da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, publica hoje na Internet um artigo desconcertante -ao menos para leigos. É complicado, como tudo hoje em biologia molecular, mas pode ser resumido numa frase: o tipo de câncer causado pelo amianto (asbesto) pode ser intermediado por um vírus.
E um vírus de macaco, acredite.
O tumor em causa é o mesotelioma, um tanto raro (não muito mais do que um caso para cada milhão de pessoas). Já foi estabelecida a ligação desse câncer, que ataca uma membrana em volta do pulmão (o mesotélio), com as fibras longas de amianto, se aspiradas. Também já se sabia que o vírus símio SV40 é encontrado em alguns portadores de mesotelioma.
A novidade no artigo de Michele Carbone e colegas na "PNAS" foi provar que o SV40 tem uma predileção por células mesoteliais e que é capaz de transformá-las sem destruí-las. Eles também indicam que essa transformação, por algum processo desconhecido, parece tornar as células mais suscetíveis ao desenvolvimento do câncer na presença de amianto.
Por certo não se trata da única doença humana séria causada por vírus animais, nem mesmo de macacos. Está aí o HIV, que a equipe da cientista Beatrice Hahn já demonstrou ter passado de chimpanzés para o homem, dando nascimento à Aids. Ebola e febre amarela silvestre também são doenças relacionadas com essa promiscuidade ambiental entre espécies.
Há muito pesquisador preocupado com as chamadas doenças emergentes, fruto da penetração inexorável do gênero humano nos últimos redutos tropicais e ecossistemas inóspitos. Centros de excelência no exterior, como a Universidade Harvard, estão criando centros especializados nesse novo problema de saúde pública.
O provável aquecimento global, provocado pela emissão contínua de gases do efeito estufa numa economia mundial viciada em combustíveis fósseis, só piora o quadro. Com o aumento da temperatura média, a fronteira de doenças do Terceiro Mundo -como malária e dengue- pode deslocar-se mais para o Norte. Não é pelos pobres do Sul, mas em causa própria, que países desenvolvidos se dedicam à pesquisa das pestes do novo milênio.
Nesse contexto, soa de fato temerário investir milhões e milhões em pesquisas para transformar porcos em doadores de órgãos para transplantes, como fazem algumas empresas de biotecnologia. Afinal, é sabido que a espécie Sus scrofa é um cavalo de Tróia, escondendo em seu ventre genético o chamado Perv (retrovírus endógeno do porco). Essas partículas virais não afetam os suínos, mas poderiam dar origem a novas doenças no Homo sapiens -você, eu, todos nós.
E não se diga que a probabilidade é mínima, que é preciso pesar riscos contra benefícios etc. Artigo publicado eletronicamente pela revista "Nature" (www.nature.com) quinta-feira passada mostrou que, em camundongos, esse é exatamente o efeito colhido: infecção de tecidos do roedor pelo Perv suíno redivivo.
Como empresas de biotecnologia precisam justificar essa aventura milionária para seus acionistas, daqui a pouco vão dizer que os céticos são inimigos do progresso. Não caia nessa.


Marcelo Leite é editor de Ciência da Folha e autor do livro "Os Alimentos Transgênicos", da coleção "Folha Explica".


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