São Paulo, domingo, 22 de setembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Pós-Moderno modernista

ARNALDO CARRILHO

O dr. Lucio Costa não suportava a adjetivação "moderna" acoplada à arquitetura que seu reduto purista introduziria no Brasil. Tinha razão o mestre. Sua missão, que tomou patriótica e revolucionariamente, pautava-se na integração de novos princípios à nossa realidade patrimonial. Assim como os cinemanovistas da primeira metade dos anos 60 empreenderam uma repurificação do cinema brasileiro, três décadas antes a equipe de dr. Lucio recriaria a arquitetura brasileira.
Produtos de arte mais recente, as imagens de Humberto Mauro foram referências à retomada do discurso cinematográfico pelo cinema novo. As edificações e os procedimentos de nossos arquitetos e mestres-de-obras coloniais eram pilares e vigas-mestras da nova arquitetura.
Surpreendeu a perplexidade manifestada por Luiz Paulo Conde pela degradação da arquitetura brasileira. Em texto recente de sua lavra, o ex-prefeito carioca preconizou uma "volta aos fundamentos" para salvá-la ("De volta aos fundamentos", "Tendências/Debates", pág. A3, 29/8).
Ficou implícito, nas entrelinhas, que o "revival" teria por base o episódio brasileiro da arquitetura contemporânea. Em outras palavras, aquele aberto pelos inícios da construção do Palácio Gustavo Capanema e da nova capital federal (1937-57). Foram, como sabido, duas décadas em que arquitetura e urbanismo se desenvolveram de maneira criativamente original, tudo muito bem registrado pelo mundo afora em anais e compêndios sobre o assunto.
Conde foi magistral na descrição dos sintomas. E falhou no diagnóstico. Não desceu às causas do problema, que extrapola o segmento a que se dedica. Por outro lado, não interdisciplinarizou a matéria, passando em brancas nuvens duas ordens de considerações: o Brasil não sai da crise socioeconômica faz três décadas; e sua cultura foi desde então explodida por torpedos pós-modernos.
Nos anos 70, a moda era a de falar em "tipologias arquiteturais". Deu no que deu: arranha-céus acortinados com vidros fumês de alto a baixo, como a "imitar os óculos escuros de nossos generais" -observou à época o insuspeito J. O. de Meira Penna. Na década sucessiva, caiu-se no besteirol e, na de 90, na melancólica "arquitetura de eventos".
Essa mania de recorrer ao passado recente é, aliás, pós-moderna, de vez que nada se inventou para tapar as crateras resultantes dos impactos agressores. Um Brasil pobre, mas autoritário, ergueu a magnífica sede do Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro; outro, ainda pobre, conquanto formalmente democrático, construiu Brasília.


A mesmice domina os espaços, simbolizando a impotência dos poderes públicos diante das ganâncias imobiliárias


Não era, contudo, a perseverança das desigualdades sociais que interromperia os surtos vanguardistas. Foi o empobrecimento mental das elites, e não apenas brasileiras, que o fez, distanciando-as das respectivas culturas e artes.
As "americanalhices" -ótimo neologismo perpetrado por Conde- atrapalham mesmo os pensamentos autóctones, em todas as partes. Seus estragos entre nós já resultam em anos de atraso, como se verifica em qualquer cidade do país com mais de 300 mil habitantes. As sete elencadas pelo ex-prefeito do Rio, embora frutos de planejamento urbano (há várias outras), ostentam com orgulho insano construções fora de escala, como sinais de "progresso".
A mesmice, senão a feiúra, domina os espaços, simbolizando a impotência dos poderes públicos diante das ganâncias imobiliárias. A preferência pelos veículos a motor, em detrimento dos pedestres, esgarçou os tecidos urbanos, o tráfego corroendo bairros inteiros.
Edificações, agenciamentos urbanísticos, formas de objetos de uso corrente, comunicação visual não foram as únicas prejudicadas. A crise não é de arquitetura, ela é global e sistêmica.
Como os países periféricos sofrem mais, difícil exportar nossos raros talentos, salvo um ou outro projeto de Oscar Niemeyer.
Já os americanos, europeus e japoneses famosos, ligados a interesses multinacionais, projetam para o exterior mais que em seus países. Digno supor que Conde saiba que também ficamos para trás em outros campos: cinema, artes plásticas -até a MPB- não se renovaram. Pararam no tempo. O resto é imitação, imputado estultamente ao "novo".


Arnaldo Carrilho, 65, diplomata, é diretor-presidente da Riofilme.


Texto Anterior:
TENDÊNCIAS/DEBATES
Koichiro Matsuura: A promessa que ainda não foi cumprida

Próximo Texto: Painel do Leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.