São Paulo, sexta-feira, 22 de novembro de 2002

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JOSÉ SARNEY

A calmaria e o Brasil vai à Guerra

"Depois de procelosa tempestade...", para relembrar Camões, as coisas se acalmam. Não chegou a catástrofe que apregoaram. O pleito realizou-se, e as nuvens negras se dissiparam. Parece que o perigo não estava em Lula, mas no outro. Eleições geram efeitos colaterais sadios para a sociedade: as paixões passam, as tensões se aliviam, as tempestades aprontadas e anunciadas se dissolvem, a rotina traz claridade e as esperanças brotam e crescem.
Quem arriscaria prever o clima que vivemos? O dólar disparado parou e caiu. A inflação subiu, não por culpa de Lula, mas do passado. No final do primeiro mandado de FHC, o IGP da Fundação Getúlio Vargas estava em torno de 1,7% ao ano e, agora, em 17% -dez vezes. Uma herança preocupante que recebe o novo presidente, pois esse índice é indexador das tarifas públicas.
Do Senado americano surge a surpresa agradável: uma moção de congratulação pela eleição de Lula, saudando-o como "um parceiro democrático de numerosos esforços bilaterais e multilaterais dos quais os Estados Unidos e o Brasil são parte". Lula, quem diria, conseguiu que democratas e republicanos se unissem para homenageá-lo. A iniciativa dos senadores Christopher, democrata de Connecticut, e Chafee, republicano de Rhode Island, foi aprovada por unanimidade. Na resolução de quatro páginas -noticiam os jornais-, os senadores não apenas fizeram um gesto de cortesia mas também se congratularam com o presidente Bush pelo convite feito ao presidente eleito do Brasil para se encontrarem numa reunião de trabalho.
É uma demonstração de como a eleição de Lula foi recebida no exterior -e prova o embuste dos receios alardeados na campanha eleitoral. A biografia de Lula é um trunfo de que o Brasil passa a dispor na defesa de seus interesses.
Mas, se lá são flores, cá não são tantas. A semana que passa deixa um rastro de notícias más: a renda do brasileiro caiu 1,3%, a cesta básica passou a valer um salário mínimo, a gasolina subiu além de R$ 2, passando a pesar seriamente no bolso do consumidor, os juros subiram, a inflação bateu recorde e o fantasma da recessão está no ringue. A dívida pública continua no tobogã e, como maré, sobe e baixa ao sabor das altas e dos recuos dos juros e do dólar. Se o dólar baixa, a dívida baixa, mas sobe o juro e a dívida dispara. Anteontem, por exemplo, com a subida dos juros para 22% -a taxa real mais alta do mundo-, a dívida subiu R$ 3,2 bilhões, sendo seu total de R$ 632 bilhões. Coisa para ninguém botar defeito!
Mas "está tudo bem". A transição transita e a novidade vem do secretário da Defesa dos Estados Unidos, que, na contra-mão do Senado americano, coloca uma pedra para Lula: lança a idéia de um tratado de paz para a América Latina. Presente de grego. Diz que a guerra é global, que a América do Sul está cheia de terroristas e que há a necessidade de criar-se uma força sul-americana, treinada em cooperação com os EUA, para lutar "em qualquer lugar do mundo". "Coisa de prestígio", sobretudo pelo que oferece: o Brasil tem a honra de participar da guerra de Bush, manda seus soldados e "os Estados Unidos fornecem o transporte" para morrermos atrás de Bin Laden.
"Muy" amigo.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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