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São Paulo, sábado, 22 de novembro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Os contos de Hoffman

RIO DE JANEIRO - Para quem não sabe, não lembra ou não dá importância, hoje é dia de santa Cecília, padroeira da música e dos músicos. Pelo mundo todo, há conservatórios, orquestras, coros e teatros dedicados a ela -seria uma data alegre para comemorar, mas ela dói aqui dentro, apesar dos anos que já se passaram e de trombadas maiores que fui recebendo pela vida afora.
Foi a primeira vez que experimentei a exclusão social. Quase todos os alunos tinham boa voz e cantavam bem, por isso pertenciam ao coro Santa Cecília, que cantava as antífonas em gregoriano, as missas de Schubert e de Perosi, a maravilhosa "Messa pro papa Marcello", de Palestrina, além de coros de ópera como o "Và pensiero", de Verdi, ou o "Ineggiamo al Signore", de Mascagni.
Já era um castigo não participar daquele grupo de eleitos, que ficava lá em cima, no bem trabalhado coro barroco da catedral, ao lado do órgão, que ainda tinha foles acionados por pedais. No dia de santa Cecília, era feriado para quem fazia parte do coro, iam a Paquetá ou subiam o alto do Sumaré, levando imensas cestas com comezainas, sorvetes, refrescos. Voltavam à tarde, cansados e cevados de doces e de sol.
Desafinado e tímido, eu fazia parte dos excluídos, uns seis ou sete gatos-pingados que iam para as aulas e cumpriam a pasmosa rotina dos dias comuns. Os professores olhavam para nós com má vontade, no fundo deveriam achar que perdiam tempo com aquele rebotalho discriminado e incompetente, que nem podia cantar o "Aleluia" de Haendel nem mesmo os hinos que Villa-Lobos fazia naquele tempo, exaltando a nossa raça.
Houve um ano em que, para evitar o vexame, aleguei uma dor de garganta e passei o dia na enfermaria, sozinho, ouvindo, à distância, o coro que ensaiava a barcarola dos "Contos de Hoffman".


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