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CARLOS HEITOR CONY
Os contos de Hoffman
RIO DE JANEIRO - Para quem não sabe, não lembra ou não dá importância, hoje é dia de santa Cecília,
padroeira da música e dos músicos.
Pelo mundo todo, há conservatórios,
orquestras, coros e teatros dedicados
a ela -seria uma data alegre para
comemorar, mas ela dói aqui dentro,
apesar dos anos que já se passaram e
de trombadas maiores que fui recebendo pela vida afora.
Foi a primeira vez que experimentei a exclusão social. Quase todos os
alunos tinham boa voz e cantavam
bem, por isso pertenciam ao coro
Santa Cecília, que cantava as antífonas em gregoriano, as missas de
Schubert e de Perosi, a maravilhosa
"Messa pro papa Marcello", de Palestrina, além de coros de ópera como o
"Và pensiero", de Verdi, ou o "Ineggiamo al Signore", de Mascagni.
Já era um castigo não participar
daquele grupo de eleitos, que ficava
lá em cima, no bem trabalhado coro
barroco da catedral, ao lado do órgão, que ainda tinha foles acionados
por pedais. No dia de santa Cecília,
era feriado para quem fazia parte do
coro, iam a Paquetá ou subiam o alto
do Sumaré, levando imensas cestas
com comezainas, sorvetes, refrescos.
Voltavam à tarde, cansados e cevados de doces e de sol.
Desafinado e tímido, eu fazia parte
dos excluídos, uns seis ou sete gatos-pingados que iam para as aulas e
cumpriam a pasmosa rotina dos dias
comuns. Os professores olhavam para nós com má vontade, no fundo deveriam achar que perdiam tempo
com aquele rebotalho discriminado e
incompetente, que nem podia cantar
o "Aleluia" de Haendel nem mesmo
os hinos que Villa-Lobos fazia naquele tempo, exaltando a nossa raça.
Houve um ano em que, para evitar
o vexame, aleguei uma dor de garganta e passei o dia na enfermaria,
sozinho, ouvindo, à distância, o coro
que ensaiava a barcarola dos "Contos de Hoffman".
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