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São Paulo, sábado, 22 de novembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A campanha nacional de prevenção à Aids é falha?

NÃO

Aids: o Brasil não a ignora

ALEXANDRE GRANGEIRO

Os números não são exatos. São, antes, uma brilhante invenção humana na qual aprendemos a confiar com uma fé cega, quase fundamentalista. A subjetividade dos números teve mais um momento de glória nesta semana, com a divulgação pela empresa de comunicação britânica BBC de pesquisa, realizada em 15 países, sobre Aids e HIV. A manchete mexeu com os brios dos brasileiros, já acostumados a ouvir elogios em outras línguas ao seu programa de prevenção à Aids. O dado divulgado: "61% dos brasileiros não reconhecem a Aids como uma doença fatal". A interpretação: "Brasileiro mostrou maior nível de ignorância sobre a doença entre todos os países pesquisados".
Por uma semana, voltamos a ser o país sábio só no futebol. Em todo o resto somos muito ignorantes e ponto final.
Mas façamos uma releitura da pesquisa da BBC. Foram entrevistadas, por telefone, 1.007 pessoas nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre. Quase todos os entrevistados na pesquisa, 99%, responderam que o HIV é transmitido por meio da relação sexual desprotegida com uma pessoa infectada e com o compartilhamento de seringas contaminadas -o maior nível de conhecimento sobre as vias de transmissão do vírus entre os países pesquisados. Empatamos com os EUA. O resultado reflete o conhecimento da população sobre as principais formas de transmissão e conclui que os brasileiros sabem, sim, evitar o vírus da Aids.
Recorro à pesquisa realizada pelo Ibope no início de 2003, em amostragem aleatória representativa de todo o país, para validar minha afirmação. Quase 80% da população sexualmente ativa no Brasil relatou o uso da camisinha nos últimos seis meses com um parceiro eventual; 58% usaram o preservativo em todas as relações. Será que isso é ignorar o HIV e a Aids?
Voltemos aos números da BBC. A pesquisa fez um ranking com cinco problemas (violência e impunidade; problemas de saúde em geral; Aids; segurança financeira; e terrorismo), para mostrar quais deles mais afligem os brasileiros. A Aids ficou em terceiro lugar. Para as pessoas que foram ouvidas, Aids é um problema que preocupa mais que segurança financeira pessoal, isso falando de um país que tem 16% de desemprego. Ora, se 61% dos entrevistados não sabem que a Aids é uma doença grave, como poderiam estar tão preocupados com ela?
Acredito que aos números apresentados cabe outra interpretação. Trata-se, muito antes, de um reflexo de como o brasileiro vê a Aids. E vê de uma forma muito diferente do que via no início da epidemia. Há alguns anos, a sociedade primeiro -e em seguida o governo- corrigiu o rumo de como tratavam a Aids. Paramos de falar que Aids mata, para dizer que Aids tem prevenção. Decisão pragmática.
Deixamos de estigmatizar as pessoas com o vírus e nos concentramos naquilo que poderia estar sob nosso controle, evitar novas infecções. E, mais uma vez, os números balizam o raciocínio. No final da década de 80, o Banco Mundial estimou que o Brasil teria 1,2 milhão de pessoas infectadas com o vírus. Estamos em 2003 e temos cerca de 600 mil pessoas infectadas.
Somem-se a isso os resultados da política de tratamento adotada no país desde 1996, com a distribuição de medicamentos anti-retrovirais para pacientes com Aids. Caiu muito a mortalidade por Aids no país. Acredito que seja isso o que os números dizem. Devido a essa conquista, os brasileiros sabem que a Aids é uma doença que tem tratamento no país e que é possível garantir a manutenção da qualidade de vida de seus pacientes. O estigma de doença que mata em poucos dias, comum no início da epidemia, foi trocado pelo reconhecimento dos cidadãos brasileiros de que a Aids está deixando de ser uma doença fatal, para ser uma doença crônica, passível de tratamento.
Lembro quando comecei a trabalhar no Centro de Referência em Tratamento de Aids em São Paulo (CRT), no início da década de 90. Na época, o ambulatório do CRT contava com uma sala de velórios. Quem vai lá hoje encontra pacientes circulando pelos corredores, alguns aguardando o atendimento médico, outros retirando medicamentos e muitos protestando porque os exames de carga viral e CD4, usados para monitorar a quantidade de células de defesa e de vírus no organismo, foram marcados para dali a dez dias (o de carga viral) e um dia (o CD4).
Fico particularmente feliz ao ver as pessoas protestando e saber que ainda temos muito o que fazer para melhorar a resposta que estamos construindo para essa epidemia. Feliz, sobretudo, por saber que as pessoas com Aids em nosso país podem protestar. Ainda bem que os números são subjetivos.


Alexandre Grangeiro, 38, sociólogo, é diretor do Programa Nacional de DST (doenças sexualmente transmissíveis) e Aids do Ministério da Saúde.


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