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São Paulo, sábado, 22 de novembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A campanha nacional de prevenção à Aids é falha?

SIM

A doença cartão-postal

MÁRIO SCHEFFER

A constatação de que 61% dos brasileiros não acreditam que a Aids pode levar à morte suscitou um debate intrigante.
O Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde apressou-se em dizer que essa e outras conclusões de recente pesquisa da rede BBC só confirmam o sucesso das campanhas e ações governamentais. A convicção nem sequer foi abalada com o dado de que 1 em cada 4 brasileiros acredita ser possível se infectar por meio do compartilhamento de objetos, passo certo para a discriminação contra as pessoas que vivem com HIV e Aids; ou com a revelação de que 28% desconhecem que as mulheres infectadas podem transmitir o vírus para seus filhos. A ignorância, neste caso, ao lado das deficiências do pré-natal na rede pública, pode estar relacionada ao fato de que, das 17 mil gestantes infectadas pelo HIV a cada ano no país, apenas 6.000 sejam tratadas.
Não é porque deixaram de chocar a população com mensagens mórbidas que as campanhas falhas. No início da epidemia, o Ministério da Saúde fez veicular peças abomináveis: "A Aids mata sem piedade. Não permita que essa seja a última viagem da sua vida" e "Se você não se cuidar, a Aids vai te pegar". Baseadas no terrorismo, não só afastaram as pessoas da prevenção, mas também propagaram a discriminação e o estereótipo do paciente terminal.
As campanhas evoluíram, popularizaram informações básicas e até fizeram aumentar o consumo de preservativos. Também as ações dirigidas, executadas pelas ONGs, mostraram resultados positivos em grupos vulneráveis, mesmo que de curto alcance e quase nunca avaliadas.
A resposta brasileira à epidemia foi construída sobre a garantia do direito à saúde e à afirmação da vida. Por isso a consciência de que a Aids pode matar não tem nenhum impacto comprovado para a prevenção, tampouco há evidências de que o acesso ao coquetel possa estar ligado às práticas de risco, como as relações sexuais desprotegidas.
Nesse aspecto, a pesquisa da BBC chama a atenção não para os erros das campanhas, mas é forte indício da banalização da epidemia. O acesso universal ao coquetel, a queda drástica do número de óbitos e de internações, a melhoria na qualidade de vida escamotearam parte da realidade: pessoas continuam morrendo por causa da Aids no Brasil, e não apenas por fatalidade do destino.
Vivem no Brasil 600 mil infectados. São 10 mil mortes e 21 mil novos casos de Aids por ano. Todos os dias, cerca de 27 pessoas morrem de Aids e outras 58 iniciam tratamento. A Aids é a segunda causa de morte entre os homens jovens e as mulheres. Mesmo quando comparadas às projeções sombrias da era pré-coquetel, as cifras não permitem comemoração nenhuma.
A infecção, o adoecimento e a morte por causa da Aids são menos visíveis para a população em geral, mas continuam presentes em nossas ONGs e casas de apoio, em nosso círculo de amizades, em nossos locais de trabalho, famílias e comunidades. A doença quase crônica permite a existência digna, mas não atenua o drama humano por trás de cada morte que poderia ser evitada.
Como no Primeiro Mundo, muitas mortes resultam da doença incurável, pois os medicamentos ainda são incapazes de erradicar o vírus, as resistências a eles são inevitáveis e seus efeitos colaterais apavoram médicos e pacientes. Mas, por aqui, a omissão também mata. Têm contribuído a situação de miséria -em que a Aids é só coadjuvante da exclusão social-, o déficit de leitos para internação (faltam mais de cem na cidade de São Paulo), a constante falta de medicamentos para tratar doenças oportunistas -obrigação de Estados e municípios que não assumem a responsabilidade-, a superlotação e a deterioração de serviços até então de excelência, a exemplo do Hospital Emílio Ribas, de São Paulo, a grande demora na realização de exames na rede pública, o início tardio do tratamento -resultado da pífia testagem precoce do HIV na população-, a falta de programas de incentivo à adesão à terapia.
O sucesso de uma política de combate à Aids não pode ser creditado apenas a medidas setoriais, à garantia do acesso ao coquetel ou à negociação de bons preços de remédios com as multinacionais. Viabilizar o Sistema Único de Saúde e implementar política de prevenção mais eficaz serão os maiores desafios na terceira década da Aids no Brasil.
A percepção de 66% dos brasileiros entrevistados na pesquisa da BBC é de que não está sendo feito o suficiente para prevenir e combater a Aids. Só temos a avançar ao admitir que, mesmo diante de recursos limitados, melhores resultados poderiam ser alcançados. Os prêmios, os elogios e a aclamação internacional elevaram o combate à Aids a cartão-postal de um país que ainda coleciona péssimos indicadores sociais e de saúde. É preciso dar um passo adiante.


Mário Scheffer, 37, comunicador social e sanitarista, é diretor do Fórum de ONGs/Aids do Estado de São Paulo e membro do Conselho Nacional de Saúde.


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