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TENDÊNCIAS/DEBATES
A campanha nacional de prevenção à Aids é falha?
SIM
A doença cartão-postal
MÁRIO SCHEFFER
A constatação de que 61% dos
brasileiros não acreditam que a
Aids pode levar à morte suscitou um debate intrigante.
O Programa Nacional de DST/Aids do
Ministério da Saúde apressou-se em dizer que essa e outras conclusões de recente pesquisa da rede BBC só confirmam o sucesso das campanhas e ações
governamentais. A convicção nem sequer foi abalada com o dado de que 1
em cada 4 brasileiros acredita ser possível se infectar por meio do compartilhamento de objetos, passo certo para a
discriminação contra as pessoas que vivem com HIV e Aids; ou com a revelação de que 28% desconhecem que as
mulheres infectadas podem transmitir
o vírus para seus filhos. A ignorância,
neste caso, ao lado das deficiências do
pré-natal na rede pública, pode estar relacionada ao fato de que, das 17 mil gestantes infectadas pelo HIV a cada ano
no país, apenas 6.000 sejam tratadas.
Não é porque deixaram de chocar a
população com mensagens mórbidas
que as campanhas falhas. No início da
epidemia, o Ministério da Saúde fez veicular peças abomináveis: "A Aids mata
sem piedade. Não permita que essa seja
a última viagem da sua vida" e "Se você
não se cuidar, a Aids vai te pegar". Baseadas no terrorismo, não só afastaram
as pessoas da prevenção, mas também
propagaram a discriminação e o estereótipo do paciente terminal.
As campanhas evoluíram, popularizaram informações básicas e até fizeram aumentar o consumo de preservativos. Também as ações dirigidas, executadas pelas ONGs, mostraram resultados positivos em grupos vulneráveis,
mesmo que de curto alcance e quase
nunca avaliadas.
A resposta brasileira à epidemia foi
construída sobre a garantia do direito à
saúde e à afirmação da vida. Por isso a
consciência de que a Aids pode matar
não tem nenhum impacto comprovado
para a prevenção, tampouco há evidências de que o acesso ao coquetel possa
estar ligado às práticas de risco, como as
relações sexuais desprotegidas.
Nesse aspecto, a pesquisa da BBC chama a atenção não para os erros das campanhas, mas é forte indício da banalização da epidemia. O acesso universal ao
coquetel, a queda drástica do número
de óbitos e de internações, a melhoria
na qualidade de vida escamotearam
parte da realidade: pessoas continuam
morrendo por causa da Aids no Brasil, e
não apenas por fatalidade do destino.
Vivem no Brasil 600 mil infectados.
São 10 mil mortes e 21 mil novos casos
de Aids por ano. Todos os dias, cerca de
27 pessoas morrem de Aids e outras 58
iniciam tratamento. A Aids é a segunda
causa de morte entre os homens jovens
e as mulheres. Mesmo quando comparadas às projeções sombrias da era pré-coquetel, as cifras não permitem comemoração nenhuma.
A infecção, o adoecimento e a morte
por causa da Aids são menos visíveis
para a população em geral, mas continuam presentes em nossas ONGs e casas de apoio, em nosso círculo de amizades, em nossos locais de trabalho, famílias e comunidades. A doença quase
crônica permite a existência digna, mas
não atenua o drama humano por trás de
cada morte que poderia ser evitada.
Como no Primeiro Mundo, muitas
mortes resultam da doença incurável,
pois os medicamentos ainda são incapazes de erradicar o vírus, as resistências a eles são inevitáveis e seus efeitos
colaterais apavoram médicos e pacientes. Mas, por aqui, a omissão também
mata. Têm contribuído a situação de
miséria -em que a Aids é só coadjuvante da exclusão social-, o déficit de
leitos para internação (faltam mais de
cem na cidade de São Paulo), a constante falta de medicamentos para tratar
doenças oportunistas -obrigação de
Estados e municípios que não assumem
a responsabilidade-, a superlotação e a
deterioração de serviços até então de excelência, a exemplo do Hospital Emílio
Ribas, de São Paulo, a grande demora
na realização de exames na rede pública, o início tardio do tratamento -resultado da pífia testagem precoce do
HIV na população-, a falta de programas de incentivo à adesão à terapia.
O sucesso de uma política de combate
à Aids não pode ser creditado apenas a
medidas setoriais, à garantia do acesso
ao coquetel ou à negociação de bons
preços de remédios com as multinacionais. Viabilizar o Sistema Único de Saúde e implementar política de prevenção
mais eficaz serão os maiores desafios na
terceira década da Aids no Brasil.
A percepção de 66% dos brasileiros
entrevistados na pesquisa da BBC é de
que não está sendo feito o suficiente para prevenir e combater a Aids. Só temos
a avançar ao admitir que, mesmo diante
de recursos limitados, melhores resultados poderiam ser alcançados. Os prêmios, os elogios e a aclamação internacional elevaram o combate à Aids a cartão-postal de um país que ainda coleciona péssimos indicadores sociais e de
saúde. É preciso dar um passo adiante.
Mário Scheffer, 37, comunicador social e sanitarista, é diretor do Fórum de ONGs/Aids do Estado de São Paulo e membro do Conselho Nacional de Saúde.
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