São Paulo, terça-feira, 23 de janeiro de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

TV Cultura: muito além do castelo

JORGE DA CUNHA LIMA

Jornalista há 50 anos, desde sempre prefiro uma liberdade de imprensa indevidamente exercida à censura. Fui criança na guerra e adulto no regime militar. Abomino qualquer atitude que tolha a liberdade dos jornais, dos jornalistas e dos leitores de afirmar, de pensar, de sonhar e mesmo de errar. Em reportagem publicada na Ilustrada (11/01), a Folha errou.
A TV Cultura, instituição da Fundação Padre Anchieta, tem 37 anos e não quer ficar encastelada. Conheceu desafios diversos no decurso do tempo. Começou educativa, sonhando implantar no Brasil a educação à distância. Hoje é educativa, cultural e informativa. Persegue a idéia da TV pública nem comercial nem governamental, condição que vem alcançando graças ao esforço de seus profissionais, ao apoio de empresas e de governos -notadamente o de São Paulo- e ao respeito da sociedade.
Depois de um período de crise, da demissão de 500 de nossos 1.600 funcionários e de muita ação, reequilibramos as finanças, como atestam os balanços auditados pela Andersen. Reestruturamos a área administrativa e temos tido êxito na busca de fontes alternativas de financiamento. A TV Cultura saneou suas contas a ponto de poder ampliar a sua programação. E, mais importante, sem sacrificar a qualidade. De onde, então, saíram as extravagâncias publicadas na contraditória reportagem da Ilustrada?
Talvez do fato de que as transformações tecnológicas e o impacto delas nas relações de mercado tenham aumentado o ritmo e a velocidade exigidos aos meios de comunicação, reduzindo -a ponto de quase dispensar- a reflexão para a produção de uma opinião. Esse mercado impôs uma exigência de emoção que se alimenta da violência, do escândalo, da denúncia fria. Esse mercado se encanta com os equipamentos e negligencia o pensamento; troca a qualidade pela audiência e, em decorrência, só tem um critério de avaliação: o Ibope.
As consequências desses constrangimentos são arrasadoras. O aviltamento da qualidade da TV atinge a todos nós, mas, proporcionalmente, fez da TV Cultura e da Rede Globo as mais prejudicadas em audiência: a Globo porque disputa melhor quando produz qualidade; a TV Cultura porque só pode disputar produzindo qualidade. Na imprensa escrita constatamos que a prática do erramos ou o hábito salutar das cartas dos leitores já não são suficientes para restaurar a honra das pessoas ou a imagem das instituições.
Com esses constrangimentos estruturais, exibe-se na mídia, por vezes, uma classe média subdominante, que tem comportamentos dolosos. Detém pequeno poder, com efeitos altamente destrutivos. O dolo é praticado (impresso ou televisionado) quando subordinado virtuosamente aos interesses mercadológicos do patrão ou quando é irrelevante para esses interesses.
Uma transformação como a que realizamos na TV Cultura não se faz sem atingir interesses, os quais encontram em profissionais de mídia canais para destilar seus ressentimentos. Certamente foi a partir desse caldo de motivações estruturais e circunstanciais que o editor da Ilustrada e a repórter Laura Mattos arbitraram-se em auditores da TV Cultura, decretando sua falência financeira e intelectual, minimizando as informações otimistas e verdadeiras que transmiti à repórter em mais de duas horas de entrevista e desconsiderando o que tem ido ao ar na programação.
Nossos críticos teriam razão se as mudanças e novidades implementadas tivessem sido para pior. Do lado financeiro, pela primeira vez estamos no azul. Do lado intelectual, produzimos 110 documentários nos últimos dois anos, contra uma média anual anterior de cinco, e pusemos no ar 21 novos programas -110 só são piores que cinco se ficar demonstrado que foram documentários muito ruins. Não é o caso, como comprovam as premiações recebidas.
Com base em que fundamentação nossos três novos programas jornalísticos poderiam ser tomados como piores do que nenhum? Ao constatarmos a pouca incidência de um jornalismo para o cidadão, avesso à pauta ditada pelo sensacional e mais centrado no esclarecimento, desenvolvemos o conceito de jornalismo público. Com base nele, ainda requerendo o ajuste cotidiano ditado pela humildade da experiência, pusemos no ar três novos programas informativos, o "Matéria Pública", o "Diário Paulista" e o "Conversa Afiada".


Saneamos nossas contas a ponto de podermos ampliar a programação; e, mais importante, sem sacrificar a qualidade
Essa nova ênfase no jornalismo não nos levou a abandonar a tradição na área de programação infantil -tradição essa que teve seu momento mais saliente nos idos do "Castelo Rá-Tim-Bum", quando tivemos a fortuna de aliar a genialidade dos realizadores, liderados por Cao Hamburguer e Flávio de Souza, à condição circunstancial de sermos os únicos na programação infantil e de dispormos de mais dinheiro. Cientes, por isso mesmo, de que o incrível sucesso de crítica e audiência então alcançados não podem ser colocados como meta, estamos agora em fase de produção da "Ilha Rá-Tim-Bum".
Com o enfraquecimento do ensino público fundamental e com a diluição progressiva da influência da família, a TV virou fator relevante na formação das crianças. Queremos propor a elas a construção de um mundo mais civilizado, mais ecológico, de solidariedade cotidiana. Percebemos que o adolescente é o grande abandonado da TV, que é feita para adultos e para crianças. O jovem quer ação, esporte, música, sexo e amizade. Já estão no ar alguns programas: de debates com eles ("RG"); de música para eles ("Musikaos", "Ensaio" e "Bem Brasil"); de conhecimento atual ("Vitrine") e outros com acento no entretenimento esportivo ("Movix").
Pergunto-me quem paga pelos danos morais e materiais da devastadoramente falsa reportagem de primeira página, encimada pela manchete catastrófica: "TV Cultura: um castelo em ruínas".
A imprensa livre? O direito de um jornalista ou de um veículo de comunicação de emitir sentenças condenatórias a outro veículo de comunicação, apenas baseados em insatisfações isoladas de algum fornecedor ou intelectual procurado pela repórter? O preconceito dos que não aceitam uma TV pública que busca sua autonomia intelectual, administrativa e financeira, preferindo-a eternamente subordinada ao governo? Os interessados em desmoralizar uma administração que luta por uma verdadeira TV pública no Brasil?


Jorge da Cunha Lima, 69, jornalista e escritor, é diretor-presidente da Fundação Padre Anchieta.



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