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TENDÊNCIAS/DEBATES
TV Cultura: muito além do castelo
JORGE DA CUNHA LIMA
Jornalista há 50 anos, desde sempre prefiro uma liberdade de imprensa indevidamente exercida à censura. Fui criança na guerra e adulto no
regime militar. Abomino qualquer atitude que tolha a liberdade dos jornais,
dos jornalistas e dos leitores de afirmar,
de pensar, de sonhar e mesmo de errar.
Em reportagem publicada na Ilustrada
(11/01), a Folha errou.
A TV Cultura, instituição da Fundação Padre Anchieta, tem 37 anos e não
quer ficar encastelada. Conheceu desafios diversos no decurso do tempo. Começou educativa, sonhando implantar
no Brasil a educação à distância. Hoje é
educativa, cultural e informativa. Persegue a idéia da TV pública nem comercial nem governamental, condição que
vem alcançando graças ao esforço de
seus profissionais, ao apoio de empresas e de governos -notadamente o de
São Paulo- e ao respeito da sociedade.
Depois de um período de crise, da demissão de 500 de nossos 1.600 funcionários e de muita ação, reequilibramos as
finanças, como atestam os balanços auditados pela Andersen. Reestruturamos
a área administrativa e temos tido êxito
na busca de fontes alternativas de financiamento. A TV Cultura saneou suas
contas a ponto de poder ampliar a sua
programação. E, mais importante, sem
sacrificar a qualidade. De onde, então,
saíram as extravagâncias publicadas na
contraditória reportagem da Ilustrada?
Talvez do fato de que as transformações tecnológicas e o impacto delas nas
relações de mercado tenham aumentado o ritmo e a velocidade exigidos aos
meios de comunicação, reduzindo -a
ponto de quase dispensar- a reflexão
para a produção de uma opinião. Esse
mercado impôs uma exigência de emoção que se alimenta da violência, do escândalo, da denúncia fria. Esse mercado
se encanta com os equipamentos e negligencia o pensamento; troca a qualidade pela audiência e, em decorrência,
só tem um critério de avaliação: o Ibope.
As consequências desses constrangimentos são arrasadoras. O aviltamento
da qualidade da TV atinge a todos nós,
mas, proporcionalmente, fez da TV
Cultura e da Rede Globo as mais prejudicadas em audiência: a Globo porque
disputa melhor quando produz qualidade; a TV Cultura porque só pode disputar produzindo qualidade. Na imprensa escrita constatamos que a prática do erramos ou o hábito salutar das
cartas dos leitores já não são suficientes
para restaurar a honra das pessoas ou a
imagem das instituições.
Com esses constrangimentos estruturais, exibe-se na mídia, por vezes, uma
classe média subdominante, que tem
comportamentos dolosos. Detém pequeno poder, com efeitos altamente
destrutivos. O dolo é praticado (impresso ou televisionado) quando subordinado virtuosamente aos interesses mercadológicos do patrão ou quando é irrelevante para esses interesses.
Uma transformação como a que realizamos na TV Cultura não se faz sem
atingir interesses, os quais encontram
em profissionais de mídia canais para
destilar seus ressentimentos. Certamente foi a partir desse caldo de motivações
estruturais e circunstanciais que o editor da Ilustrada e a repórter Laura Mattos arbitraram-se em auditores da TV
Cultura, decretando sua falência financeira e intelectual, minimizando as informações otimistas e verdadeiras que
transmiti à repórter em mais de duas
horas de entrevista e desconsiderando o
que tem ido ao ar na programação.
Nossos críticos teriam razão se as mudanças e novidades implementadas tivessem sido para pior. Do lado financeiro, pela primeira vez estamos no azul.
Do lado intelectual, produzimos 110 documentários nos últimos dois anos,
contra uma média anual anterior de
cinco, e pusemos no ar 21 novos programas -110 só são piores que cinco se ficar demonstrado que foram documentários muito ruins. Não é o caso, como
comprovam as premiações recebidas.
Com base em que fundamentação
nossos três novos programas jornalísticos poderiam ser tomados como piores
do que nenhum? Ao constatarmos a
pouca incidência de um jornalismo para o cidadão, avesso à pauta ditada pelo
sensacional e mais centrado no esclarecimento, desenvolvemos o conceito de
jornalismo público. Com base nele, ainda requerendo o ajuste cotidiano ditado
pela humildade da experiência, pusemos no ar três novos programas informativos, o "Matéria Pública", o "Diário
Paulista" e o "Conversa Afiada".
Saneamos nossas contas a
ponto de podermos
ampliar a programação;
e, mais importante, sem
sacrificar a qualidade
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Essa nova ênfase no jornalismo não
nos levou a abandonar a tradição na
área de programação infantil -tradição essa que teve seu momento mais saliente nos idos do "Castelo Rá-Tim-Bum", quando tivemos a fortuna de
aliar a genialidade dos realizadores, liderados por Cao Hamburguer e Flávio
de Souza, à condição circunstancial de
sermos os únicos na programação infantil e de dispormos de mais dinheiro.
Cientes, por isso mesmo, de que o incrível sucesso de crítica e audiência então
alcançados não podem ser colocados
como meta, estamos agora em fase de
produção da "Ilha Rá-Tim-Bum".
Com o enfraquecimento do ensino
público fundamental e com a diluição
progressiva da influência da família, a
TV virou fator relevante na formação
das crianças. Queremos propor a elas a
construção de um mundo mais civilizado, mais ecológico, de solidariedade cotidiana. Percebemos que o adolescente é
o grande abandonado da TV, que é feita
para adultos e para crianças. O jovem
quer ação, esporte, música, sexo e amizade. Já estão no ar alguns programas:
de debates com eles ("RG"); de música
para eles ("Musikaos", "Ensaio" e "Bem
Brasil"); de conhecimento atual ("Vitrine") e outros com acento no entretenimento esportivo ("Movix").
Pergunto-me quem paga pelos danos
morais e materiais da devastadoramente falsa reportagem de primeira página,
encimada pela manchete catastrófica:
"TV Cultura: um castelo em ruínas".
A imprensa livre? O direito de um jornalista ou de um veículo de comunicação de emitir sentenças condenatórias a
outro veículo de comunicação, apenas
baseados em insatisfações isoladas de
algum fornecedor ou intelectual procurado pela repórter? O preconceito dos
que não aceitam uma TV pública que
busca sua autonomia intelectual, administrativa e financeira, preferindo-a
eternamente subordinada ao governo?
Os interessados em desmoralizar uma
administração que luta por uma verdadeira TV pública no Brasil?
Jorge da Cunha Lima, 69, jornalista e escritor, é
diretor-presidente da Fundação Padre Anchieta.
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