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São Paulo, quinta-feira, 23 de janeiro de 2003

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FERNANDO DE BARROS E SILVA

O risco PT

Vinte e poucos dias bastaram para trazer o sonho paz e amor ao chão da realidade. É possível vislumbrar o sisudo Pedro Malan com um sorriso cínico de Monalisa estampado no rosto diante da elevação dos juros patrocinada pelo governo que o crucificava até ontem, na oposição. Não precisaria tanto para constatar que a era Lula começa como um apêndice da anterior, sob o signo do continuísmo. A novidade fica por conta das trapalhadas dos aprendizes do poder. Enquanto o próprio PT se encarrega de colocar moscas no sopão de José Graziano, bombardeando aquela que deveria ser a "vitrine social" do primeiro ano de governo -o Fome Zero-, a área econômica vai impondo uma política de tipo tucano puro-sangue ao país. A idéia de que Lula deve levar a cabo a agenda que FHC deixou incompleta parece ter sido introjetada pelo governo como uma fatalidade. A versão inicial da reforma da Previdência, by Berzoini, era mais draconiana que a proposta pelo tucanato. A reação corporativa dos diretamente atingidos não seria outra diante de uma discussão que começou ortodoxa e estreita demais para um governo que se pretende de (centro-)esquerda. Tão incerto quanto o futuro da Previdência, para a qual Lula já nomeou um interventor branco a fim de estancar a entropia criada, é o destino da reforma tributária, outra promessa não cumprida da era FHC que o PT recolocou no topo da lista. O governo terá aí, às voltas com esses dois vespeiros, oportunidade de sobra para gerenciar interesses conflitantes. Terá de arbitrar em algum momento, impondo perdas e ganhos. Em que sentido fará? Visitas midiáticas à miséria podem ser até pedagógicas num país como este, mas o risco de que Lula seja logo engolido pelo bolo que criou, como os personagens de um famoso poema de Drummond, não parece pequeno.
 
O que Lula dirá ou deixará de dizer em Davos, na presença de asseclas do companheiro Bush, de lideranças políticas da Europa e da nata da finança global, é hoje muito mais relevante do que sua participação no fórum de Porto Alegre, onde deverá reviver fora de hora o clima de comício eleitoral.
O oficialismo que ameaça esterilizar o saudável espírito de babel política dos insatisfeitos -até agora o que esse evento produziu de melhor- não se resume ao gordo patrocínio que o Fórum Social obteve do Banco do Brasil e da Petrobras. Nem, tampouco, ao fato inevitável de que servirá de vitrine para o proselitismo dos novos inquilinos do poder central.
O risco maior e previsível do fórum é sua conversão em uma imensa ONG disposta a atuar como linha auxiliar do poder. Essa vocação propositiva e, por assim dizer, "parafilantrópica" já estava presente nas edições anteriores do evento. Conforme observou à época o professor Paulo Arantes, em entrevista a esta Folha, o que mais se via no fórum, sobretudo nas centenas de oficinas temáticas desprezadas pelos holofotes da mídia, era uma frenética vontade de colaborar, propor coisas, agir afirmativamente. Nada contra essa gente que faz. Mais útil, porém, que esse afã tarefeiro talvez fosse o cultivo, ainda que mínimo, de um certo espírito de negatividade, da capacidade de permanecer do contra, sob o risco de vermos realizada mais uma das profecias de FHC: a pouca energia intelectual do país dissipada numa legião de neobobos agora no poder.


Fernando de Barros e Silva é editor de Brasil da Folha. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Otavio Frias Filho, que escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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