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São Paulo, quinta-feira, 23 de janeiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Juros

JOÃO SAYAD

A dívida pública brasileira é diferente das dívidas públicas americana, francesa ou inglesa. A dívida brasileira tem prazo médio mais curto. Uma parte dela é protegida por correção monetária, outra parte é protegida por correção cambial, e uma terceira parte rende juros flutuantes do dia. Assim, grande parte dos títulos da dívida pública brasileira é substituta próxima de um depósito à vista nos bancos, que pode ser sacado e gasto imediatamente em compras ou pagamentos, com custos muito baixos de transação. Ou seja, a dívida pública brasileira é parecida com a moeda corrente do país.
Consequentemente, aqui no Brasil, o aumento dos juros tem efeitos muito diferentes do que a elevação dos juros nos EUA ou na Europa. Quando aumenta a taxa de juros, o Federal Reserve americano produz vários efeitos.
1) Cai o valor dos títulos públicos, que têm taxas de juros prefixadas e são de longo prazo. Os proprietários desses títulos -bancos, empresas ou famílias- perdem capital e ficam mais pobres. Por isso tendem a reduzir gastos para recompor o prejuízo. O efeito tende a ser contracionista: diminui a demanda de consumo e de investimentos.
2) Bancos, empresas e famílias tendem a trocar depósitos à vista por aplicações em títulos públicos, que rendem juros mais altos. Como esses títulos são menos líquidos do que depósitos à vista (não se trocam títulos públicos de longo prazo por moeda e por bens com a mesma facilidade que no Brasil), bancos, empresas e famílias tendem a ter mais dificuldade em gastar. Isso também tende a ser contracionista: diminui a demanda de consumo e de investimento.
3) A renda disponível das famílias (o que elas ganham todos os meses) é composta por salários, lucros, pensões, aposentadorias e juros da dívida pública pagos pelo governo. Com o aumento das taxas de juros nos títulos novos, a renda disponível tende a aumentar. O efeito é expansionista, mas não é importante, pois a nova dívida representa uma parte pequena da total, que perdeu valor com o aumento dos juros. O efeito é expansionista, mas dificilmente compensa o efeito contracionista do item 1.
4) A demanda de investimento e a predisposição a consumir devem ser menores, se bem que os investimentos reagem mais a outras variáveis do que aos juros. Esse efeito é contracionista, e a demanda deve diminuir.
Nos EUA, os efeitos 1, 2 e 4 reduzem a demanda de empresas e consumidores. O efeito 3 pode aumentar a demanda, mas é pequeno. Supondo que a diminuição da demanda consiga reduzir as margens de lucro das empresas e as pressões dos trabalhadores por aumentos de salários, a inflação tenderá a diminuir.
Ao elevar as taxas de juros, o Banco Central do Brasil produz outros efeitos.
1) O valor dos títulos públicos, que têm prazo curto e, em sua maioria, não têm taxas de juros prefixadas, cai muito pouco. A maior parte dos títulos rende a taxa de juros do dia e quase não sofre perda. Os proprietários de títulos emitidos anteriormente têm prejuízo muito pequeno, o que não os induz a reduzir gastos, como nos EUA. O efeito contracionista, caso exista, é pequeno.
2) Títulos públicos brasileiros e depósitos à vista são substitutos próximos, pois têm liquidez semelhante. A liquidez da economia não é, portanto, afetada significativamente. Se o superávit primário for insuficiente para pagar os juros da dívida, o saldo total da dívida aumenta. Como a dívida pública é muito líquida, a liquidez da economia tende a aumentar. O efeito é expansionista.
3) A renda disponível das famílias aumenta bastante pelo pagamento dos juros, já que os títulos pagam juros flutuantes. Se a dívida pública representa 60% do PIB e os juros reais sobem para 12% ao ano (supondo, por simplificação, que os juros dos títulos indexados à taxa de câmbio e à inflação subam em paralelo à elevação da taxa básica), os juros pagos pelo governo aumentam em 7,2% a renda de famílias, empresas e bancos.
Assim como os pagamentos de aposentadorias e pensões representam o pagamento de trabalhadores que não trabalham mais, os pagamentos de juros representam pagamentos ao capital que está fora do processo produtivo, "aposentado". Assim, o efeito do aumento dos juros é tão expansionista quanto o efeito do aumento dos pagamentos das aposentadorias. Juros mais altos causam grande aumento da renda pessoal e dos gastos de famílias, bancos e empresas. O efeito é expansionista.
4) Juros mais altos devem reduzir os investimentos e a predisposição a consumir. Mas os investimentos privados já estão bastante reduzidos, e os juros de empréstimos aos consumidores já são muito mais elevados do que os juros fixados pelo BC. De qualquer forma, o efeito tende a ser contracionista.


No Brasil, o aumento dos juros tem efeitos muito diferentes do que a elevação dos juros nos EUA ou na Europa


Assim, no Brasil, o resultado conjunto dos efeitos 1, 2 e 3 tem grande probabilidade de ser expansionista, diferentemente do caso de países em que a dívida pública tem prazo maior, com taxas prefixadas e liquidez menor. O impacto contracionista dos juros depende excessivamente do efeito 4. Desde 1964 , o BC do Brasil vem tentando ampliar os prazos e reduzir a liquidez da dívida pública para conseguir um instrumento de financiamento não-inflacionário para o governo. O esforço tem sido em vão.
A dívida pública acabou se tornando uma moeda espetacular -rende juros altíssimos, tem alta liquidez e é protegida da inflação, das variações cambiais ou de futuras elevações de juros (segundo a preferência dos investidores). Isso faz que as taxas de juros altas produzam efeitos contraditórios e tenham uma eficiência relativamente baixa na redução da demanda e no combate à inflação.
Nos EUA, um aumento de dois pontos percentuais nas taxas de juros tem efeito contracionista muito forte. No Brasil, o BC eleva os juros reais a 12% ao ano, e a economia continua crescendo.
Juros mais altos também poderão afetar a inflação se reduzirem a taxa de câmbio. No entanto, atualmente, analistas estrangeiros demonstram mais preocupação com o crescimento da dívida interna do que com a inflação. Mesmo que os juros tivessem o efeito certeiro de reduzir a cotação do dólar, taxas de câmbio valorizadas em termos reais não seriam sustentáveis, como ficou demonstrado nos últimos anos.

João Sayad, 57, doutor em economia pela Universidade Yale, é secretário municipal de Finanças e Desenvolvimento. Foi ministro do Planejamento (governo Sarney).


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