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São Paulo, quinta-feira, 23 de janeiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Os municípios e a fome

CELSO GIGLIO

O governo recém-empossado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem como uma de suas metas prioritárias o combate à fome. A questão é complexa. Há, em andamento, uma série enorme de programas sociais, e, pelo que deu a entender até agora, o governo pretende fazer do Fome Zero uma espécie de "complementação do complementar" (existem seis programas de transferência de renda hoje no Brasil).
Uma primeira dificuldade aparece já na mensuração do problema. O PT vinha contabilizando 44 milhões de famintos no país, seguindo os cálculos do Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas). O ministro da Fazenda, Antonio Palocci Filho, recentemente, falou que o objetivo do programa era alcançar 25 milhões de pessoas, número mais condizente com as estatísticas oficiais.
Entretanto, segundo o que a imprensa tem divulgado, a operacionalização do programa ainda não está claramente definida. Falou-se na distribuição de cupons ou cartões magnéticos, cujo valor estaria entre R$ 50,00 e R$ 150,00, com um investimento inicial de R$ 1,8 bilhão a R$ 2,5 bilhões em 2003. Depois, falou-se em distribuir dinheiro. Os beneficiários teriam de comprovar, por meio de documentos fiscais, que usaram os recursos para comprar comida. Fica difícil imaginar a cena: pessoas altamente carentes exigindo notas fiscais discriminadas em pequenas vendas de minúsculas cidades do interior.
O cadastro priorizaria, de início, famílias que não recebem complementação de renda (as cadastradas no Bolsa-Escola ficariam de fora, por exemplo). O programa atingiria 959 municípios, considerados prioritários, por meio de 41 ações e contaria também com recursos advindos de doações de entidades privadas. A iniciativa de explicitar como objetivo do governo erradicar a fome é louvável. Mas é preciso reconhecer, primeiro, que não se parte do zero. Existem programas que deram bons resultados e devem ser mantidos. Segundo, é indispensável envolver os municípios nessa tarefa. Trata-se de um projeto em que a logística rivaliza em importância com o volume de recursos.
A competência dos municípios na gestão de problemas complexos pode ser vista nos excelentes resultados alcançados, nos últimos anos, nas áreas de saúde e educação, recentemente municipalizadas. Apesar de contar com recursos insuficientes, os prefeitos tiveram papel decisivo no aumento do número de estudantes matriculados no ensino fundamental (quase 100% na faixa etária de sete anos a 14 anos) e na redução da mortalidade infantil (de 47,8 por mil nascidos vivos em 1990 para 35,2 por mil em 2000, segundo o IBGE).


O modelo descentralizado deu certo na educação e na saúde. Por que não experimentá-lo no projeto Fome Zero?


Além disso, entre 1991 e 2000, a porcentagem de municípios brasileiros que possuíam um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) baixo, de acordo com a ONU, foi reduzida de 8,5% para 0,2% (Folha, 28/12/ 2002). O percentual de cidades com IDH alto subiu de 10,8% para 37,2%. É impossível negar a participação ativa das administrações municipais nessas melhoras.
Há outros dados que poderiam ser citados para comprovar a gestão responsável da maioria dos prefeitos brasileiros, mas os mencionados anteriormente já são suficientes para mostrar que os municípios têm oferecido uma grande contribuição à administração pública.
Além de sua competência na área social, vale lembrar que os prefeitos trabalham bem perto da população e, em geral, são os primeiros alvos das queixas dos cidadãos quando os serviços públicos não funcionam como deveriam. Também podem, portanto, identificar com mais facilidade e precisão qual o grau do problema nos bolsões de miséria de suas respectivas cidades.
Em razão dessas características (competência na condução de políticas na área social e proximidade com a população), os municípios não podem ser excluídos da estratégia de combate à fome proposta pelo governo do PT. Ignorar os governos locais é desperdiçar recursos técnicos e administrativos que podem ajudar (e muito) a melhorar a qualidade de vida da população mais atingida pela imensa desigualdade social do país. Somente com mais recursos, entretanto, é que os prefeitos podem -e devem- contribuir para acabar com a fome de milhões de brasileiros. O modelo descentralizado deu certo na educação e na saúde. Por que não experimentá-lo no projeto Fome Zero?

Celso Giglio, 61, é prefeito de Osasco (PSDB), presidente da Associação Paulista de Municípios e do Fórum Metropolitano de Segurança Pública e autor do livro "Municípios e Municipalismo: História e Desafios para o Século 21".


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