São Paulo, sexta-feira, 23 de janeiro de 2004

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JOSÉ SARNEY

Uma história de amor

Este espaço é dos leitores e do jornal. Não deve expressar sentimentos que possam parecer pessoais, por mais justificáveis que sejam. Mas o meu tema de hoje, embora pessoal, é daqueles que merecem uma meditação universal: a relação entre pais e filhos, os valores da família, o amor e a morte.
A visibilidade pública cria um estereótipo do político como sendo uma alma de gelo com a vaidade de parecer forte e invulnerável, de ser um fingidor da "dor que deveras sente". Felizmente, tenho todos os defeitos das mais frágeis e indefesas criaturas, as fraquezas do amar e do sentir.
Minha relação com minha mãe sempre foi muito forte. Era devoção e segurança. Meu pai morreu cedo, e recebi a graça de vê-la chegar aos 92 anos. Mas não há tempo nem idade para aceitar a morte. Evitava essa idéia. Hoje sinto como é difícil o meu mundo sem a sua presença. Os vínculos com meus antepassados acabaram-se com minha mãe. Todos estão mortos. Meus ombros pesam nas incertezas das raízes que agora sou e amanhã também morrerão para crescerem outras que um dia também se renovarão no mistério da vida.
Tenho outras confissões. Junto à minha mãe, não conseguia envelhecer. Julgava-me sempre o menino do seu carinho, um velho de 74 anos no tempo de filho, sem idade. É esse mundo que acabou.
Fui testemunha da sua vida e do seu exemplo. Menina, aos 14 anos, num desses dramas que separam as famílias, com seu forte caráter, ficou ao lado do pai, meu avô, e com ele saiu de Correntes, em Pernambuco, fugindo das secas em busca dos vales úmidos do Maranhão. Fugia da seca e do destino. De saúde frágil, viveu a pobreza mais dura. Nunca ninguém ouviu de seus lábios um lamento, nunca alterou a voz, nunca discutiu com ninguém. Ensinava pelo exemplo. Nas crises falava pelo silêncio.
Sei que existe fé porque vi minha mãe professar a fé com a força de todas as crenças. Sei o que é ser cristão porque ela era cristã: amava a todos, oferecia a outra face do rosto, sabia o que era o próximo no exercício da oculta caridade. Sei o que é a força da oração porque vi minha mãe orar a vida inteira e tudo conseguir orando, dias e noites agarrada às contas do terço e com os olhos "nos olhos do crucificado".
Sua casa sempre foi cheia dos filhos, netos, bisnetos, tataranetos, filhos que adotou e que criou e de todos que dela recebiam carinho e abrigo. Nunca deixou que o poder entrasse nessa casa, nunca lhe ofereceu cadeira larga em sua varanda. Ninguém conhece um gesto seu de interferência, uma atitude de ressentimento ou de censura. Mas não faltou nunca a predicação dos valores morais, da ponderação, do equilíbrio, do respeito às pessoas. Era pobre porque nunca quis ter nada. Sua casa era um exemplo de simplicidade e despojamento. As luzes que a enfeitavam eram suas velas e candeias.
Era uma mulher forte e frágil. Deus deu-lhe a graça de chegar ao fim da vida sem o menor sinal de senilidade. Sua cabeça era límpida e clara. Escreveu carta aos filhos. Era uma canção de gratidão pela vida, de agradecimento a Deus. Seu pedido: que fosse enterrada no mais simples caixão, com sandálias e num pobre vestido branco que, às escondidas, com a cumplicidade de uma filha, mandara fazer. Que os filhos continuassem a manter os pobres que ajudava.
Ela bem merecia aquilo que Bandeira escreveu em "Irene no Céu": "Pode entrar, você não precisa pedir licença".
Perdoe-me o leitor: é um desabafo de amor de um menino de 74 anos que perdeu seu tesouro.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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