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JOSÉ SARNEY
Uma história
de amor
Este espaço é dos leitores e do
jornal. Não deve expressar sentimentos que possam parecer pessoais,
por mais justificáveis que sejam. Mas
o meu tema de hoje, embora pessoal, é
daqueles que merecem uma meditação universal: a relação entre pais e filhos, os valores da família, o amor e a
morte.
A visibilidade pública cria um estereótipo do político como sendo uma
alma de gelo com a vaidade de parecer
forte e invulnerável, de ser um fingidor da "dor que deveras sente". Felizmente, tenho todos os defeitos das
mais frágeis e indefesas criaturas, as
fraquezas do amar e do sentir.
Minha relação com minha mãe sempre foi muito forte. Era devoção e segurança. Meu pai morreu cedo, e recebi a graça de vê-la chegar aos 92 anos.
Mas não há tempo nem idade para
aceitar a morte. Evitava essa idéia. Hoje sinto como é difícil o meu mundo
sem a sua presença. Os vínculos com
meus antepassados acabaram-se com
minha mãe. Todos estão mortos.
Meus ombros pesam nas incertezas
das raízes que agora sou e amanhã
também morrerão para crescerem
outras que um dia também se renovarão no mistério da vida.
Tenho outras confissões. Junto à minha mãe, não conseguia envelhecer.
Julgava-me sempre o menino do seu
carinho, um velho de 74 anos no tempo de filho, sem idade. É esse mundo
que acabou.
Fui testemunha da sua vida e do seu
exemplo. Menina, aos 14 anos, num
desses dramas que separam as famílias, com seu forte caráter, ficou ao lado do pai, meu avô, e com ele saiu de
Correntes, em Pernambuco, fugindo
das secas em busca dos vales úmidos
do Maranhão. Fugia da seca e do destino. De saúde frágil, viveu a pobreza
mais dura. Nunca ninguém ouviu de
seus lábios um lamento, nunca alterou
a voz, nunca discutiu com ninguém.
Ensinava pelo exemplo. Nas crises falava pelo silêncio.
Sei que existe fé porque vi minha
mãe professar a fé com a força de todas as crenças. Sei o que é ser cristão
porque ela era cristã: amava a todos,
oferecia a outra face do rosto, sabia o
que era o próximo no exercício da
oculta caridade. Sei o que é a força da
oração porque vi minha mãe orar a vida inteira e tudo conseguir orando,
dias e noites agarrada às contas do terço e com os olhos "nos olhos do crucificado".
Sua casa sempre foi cheia dos filhos,
netos, bisnetos, tataranetos, filhos que
adotou e que criou e de todos que dela
recebiam carinho e abrigo. Nunca deixou que o poder entrasse nessa casa,
nunca lhe ofereceu cadeira larga em
sua varanda. Ninguém conhece um
gesto seu de interferência, uma atitude
de ressentimento ou de censura. Mas
não faltou nunca a predicação dos valores morais, da ponderação, do equilíbrio, do respeito às pessoas. Era pobre porque nunca quis ter nada. Sua
casa era um exemplo de simplicidade
e despojamento. As luzes que a enfeitavam eram suas velas e candeias.
Era uma mulher forte e frágil. Deus
deu-lhe a graça de chegar ao fim da vida sem o menor sinal de senilidade.
Sua cabeça era límpida e clara. Escreveu carta aos filhos. Era uma canção
de gratidão pela vida, de agradecimento a Deus. Seu pedido: que fosse
enterrada no mais simples caixão,
com sandálias e num pobre vestido
branco que, às escondidas, com a
cumplicidade de uma filha, mandara
fazer. Que os filhos continuassem a
manter os pobres que ajudava.
Ela bem merecia aquilo que Bandeira escreveu em "Irene no Céu": "Pode
entrar, você não precisa pedir licença".
Perdoe-me o leitor: é um desabafo
de amor de um menino de 74 anos
que perdeu seu tesouro.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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