São Paulo, sexta-feira, 23 de janeiro de 2004

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De quando o preconceito é "compreensível"

GUSTAVO IOSCHPE

O leitor da Folha foi brindado, no dia 20 de janeiro, com um texto insidioso que, com o intuito de esclarecer confusões, tropeça na lógica, ofende a história e esbarra na condescendência ao terrorismo e ao racismo milenar.
Escreveu o sr. Mateus Soares de Azevedo que o sionismo é "ideologia nacionalista e expansionista", que 1 milhão de palestinos foram expulsos de suas terras entre 1947 e 1948, que o terrorismo suicida "não surpreende", dada a "desesperadora situação" dos palestinos. Voltando à semântica, o autor distingue o antijudaísmo ("compreensível") do anti-semitismo ("inaceitável", por ser racismo) e do anti-sionismo ("legítimo"). A retórica desbragada clama por um reencontro com a realidade.
É insultoso à coletividade humana dizer que o antijudaísmo é compreensível, por ser religioso. Certamente há diferenças de fundo entre o judeu que é perseguido, deportado ou assassinado por ser um deicida, como queria a Inquisição, ou por ser um verme, como queria Hitler. No fim das contas, porém, tem-se uma perseguição a inocentes por fazerem parte do grupo "errado" -ato hediondo que só merece nossa mais veemente condenação e esperança de que seja proscrito da história humana.


É insultoso à coletividade humana dizer que o antijudaísmo é compreensível por ser religioso


O autor diz ser o tal antijudaísmo "compreensível" porque o judaísmo "comporta obviamente uma dimensão anticristã e antiislâmica". Gostaria de saber como seria possível essa dimensão se, quando o judaísmo foi criado e seus textos fundamentais escritos, não existiam nem o cristianismo, nem o islã. E se, como diz o próprio autor, "o judaísmo não busca conversos e só raramente os aceita".
A outra distinção tentada pelo autor diz respeito ao sionismo. A oposição a esse seria não apenas legítima como praticamente um dever de honra, a serem tomadas por seu valor de face as assertivas sobre os repetidos crimes dessa ideologia narrados pelo autor. Ocorre que aí o nosso taxonomista construiu sua versão atropelando os fatos. Ao dizer que 1 milhão de palestinos foram expulsos em 1947-48, esquece-se de mencionar, primeiro, a origem desse número mágico; segundo, que a maioria das terras adquiridas pelo estado judeu foi vendida por seus proprietários, que em sua maioria residiam alhures; e, mais importante, que os palestinos sofreram esse revés como consequência de uma guerra de aniquilação que eles mesmos e seus aliados árabes declararam contra o nascente Estado de Israel, ao se recusarem a aceitar o plano de partilha da Palestina aprovado pela ONU.
Também a guerra de 1967, em que os palestinos perderam as terras que agora buscam reconquistar para construir o Estado que merecem, foi resultado de nova investida bélica dos países árabes. Além de Gaza e Cisjordânia, Israel conquistou então toda a Península do Sinai e as Colinas de Golã. O Sinai, várias ordens de grandeza maior que Gaza e Cisjordânia somadas, foi devolvido dez anos depois em acordo de paz com o Egito. Para a devolução das colinas de Golã faltaram resolver, literalmente, alguns metros na negociação entre Ehud Barak e Hafez al-Assad. O mesmo premiê israelense ofereceu mais de 91% dos territórios palestinos ao seu colega, que sabidamente refugou. Outro território mantido por Israel depois de guerra com o Líbano foi inteiramente devolvido, mesmo sem acordo de paz.
O leitor mais cauteloso deve notar que, para um Estado fundado sobre uma ideologia "expansionista", essas devoluções e negociações, mesmo num contexto de supremacia militar avassaladora, devem significar que ou Israel é administrado por um bando de apóstatas incompetentes ou que a ideologia não é expansionista. O sionismo prega a criação de um estado judeu em suas terras ancestrais. Ao confundir esse objetivo com um suposto expansionismo, o autor cai em uma das confusões que buscava dissipar: mistura Estado com governo, e ideologia de Estado com aquela de partidos políticos.
Israel é uma democracia que acolhe em seu parlamento partidos árabes e judeus, laicos e religiosos, comunistas e neoliberais. Alguns desses pregam a construção de um Estado que inclua partes da Jordânia, Síria e Iraque. Outros, que se restrinja aos territórios pré-1967. Em algumas eleições um campo sai vitorioso; noutras, o lado oposto. É possível e até necessário opor-se a governos como esse que está aí, que conspurcam os ideais humanistas do judaísmo e do Estado de Israel ao violar normas do direito e da decência internacionais tentando obter a paz através da guerra.
Mas ao lutar contra essa sandice é preciso, ao mesmo tempo, não imputar a um Estado ou povo o que é ação de um governo. Em se fazendo isso, abre-se o cadafalso para o descenso rumo à barbárie, onde "não surpreende" nem repugna o terrorismo suicida que vitima inocentes. Cai-se no erro, ainda pior, de negar a um povo o direito de estabelecer sua autonomia política em sua terra pelas falhas de seus governantes. Nosso ensaísta certamente não notou onde sua lógica o conduziu: se as faltas dos líderes deslegitimarem as aspirações de autodeterminação do povo, afinal, o anti-palestinianismo haveria de ser tão legítimo quanto o anti-sionismo, e o Estado palestino tão vindouro quanto o próximo Messias.

Gustavo Ioschpe, 26, é mestre em desenvolvimento econômico pela Universidade Yale (EUA) e colaborador do Folha Equilíbrio.


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