São Paulo, Terça-feira, 23 de Fevereiro de 1999
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Arte erudita e arte popular

ARIANO SUASSUNA

A respeito do Projeto Cultural que orientou meu trabalho na Secretaria da Cultura de Pernambuco, dois escritores recifenses, Lucilo Varejão Filho e Amílcar Dória Mattos, fizeram-me algumas indagações bastante pertinentes, e a elas vou tentar responder aqui; principalmente porque talvez assim eu consiga desfazer alguns equívocos que me cercam há bastante tempo.
Um deles, é o da relação que mantenho com a arte popular. Já vi manchetes muito diferentes, às vezes até contrárias, a tal respeito. Uma, por exemplo, afirmava: "Suassuna nega a existência de uma cultura popular". A outra dizia: "Suassuna só quer saber de arte popular". Quer dizer: as manchetes se contradizem e estão ambas erradas.
Pois bem: no encontro que mantive com aqueles escritores, disse-me Lucilo Varejão Filho que só gosta da arte popular quando recriada por um grande artista erudito; como é o caso, acrescento eu, de um Villa-Lobos ou de um Gilvan Samico. Na hora, falei alguma coisa do que pensava. Mas retomo, aqui, o assunto, com o objetivo de tornar mais claras minhas opiniões.
A certa altura do Projeto Cultural Pernambuco-Brasil, escrevi: "Um autor de folhetos como Francisco Sales Areda, autor da obra clássica que é "O Homem da Vaca e o Poder da Fortuna", é tão importante para a cultura brasileira quanto qualquer poeta erudito". Evidentemente essas palavras foram escritas sem se levar em conta o caso de gênios, como Dante, que não poderiam ser alcançados pela comparação. Nunca eu insinuaria, nem de longe, que tanto vale "A Divina Comédia" quanto "O Homem da Vaca e o Poder da Fortuna". Quem estava em meu espírito no momento eram poetas como Olavo Bilac ou Raimundo Correia, que realmente não me parecem mais importantes para a cultura brasileira do que José Pacheco, Leandro Gomes de Barros ou Francisco Sales Areda. Sim, porque também livros de poemas que contenham sonetos como "As Pombas" ou "Ouvir Estrelas" não podem, nem de longe, ser comparados com "A Vida Nova" ou "A Divina Comédia".
Mas o que acabo de dizer, agora, no campo da literatura, vale também para as outras artes, em cujo conjunto tenho um gosto tão exigente que já me valeu ser acusado de elitista em diversas ocasiões. Não faz muito tempo, incorri em tal acusação porque, indagado se gostava de um certo compositor idolatrado pelos meios de comunicação, respondi que, na música, gostava mesmo era de Erik Satie e de Stravinsky; ou, no caso do Brasil, de Luis Álvares Pinto, José Maurício, Lobo de Mesquita, Villa-Lobos, Guerra Peixe e Antônio Madureira. E como me dissessem que, além de músico, o compositor de quem falávamos era "um grande poeta", retruquei que, para mim, grandes poetas eram Homero, Virgílio, Dante, Camões, Jorge de Lima e outros.
Quanto a Amílcar Dória Mattos, disse-me ele que não se interessa por escritores eruditos que, em suas obras, recriam a arte popular. É um gosto absolutamente legítimo, este dele. Existem poetas de gênio, como Shakespeare, que criam suas obras a partir dos romances, baladas e contos populares; dois dos maiores mitos presentes na obra shakespeareana, Ariel e Calibã, vieram da literatura popular dos povos saxões. Mas existem outros, igualmente geniais, como Proust, que têm posição muito diferente.
A escolha de um caminho ou de outro depende do gosto e da decisão de cada um de nós. De modo que, quando afirmo minha preferência por Cervantes, Molière, Manuel de Falla ou Garcia Lorca, que partem do popular, não estou dizendo que somente esta linhagem é legítima, estou apenas afirmando que também ela é legítima.


Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna.


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