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Arte erudita e arte popular
ARIANO SUASSUNA
A respeito do Projeto Cultural que
orientou meu trabalho na Secretaria
da Cultura de Pernambuco, dois escritores recifenses, Lucilo Varejão Filho e Amílcar Dória Mattos, fizeram-me algumas indagações bastante
pertinentes, e a elas vou tentar responder aqui; principalmente porque
talvez assim eu consiga desfazer alguns equívocos que me cercam há
bastante tempo.
Um deles, é o da relação que mantenho com a arte popular. Já vi manchetes muito diferentes, às vezes até contrárias, a tal respeito. Uma, por exemplo, afirmava: "Suassuna nega a existência de uma cultura popular". A
outra dizia: "Suassuna só quer saber
de arte popular". Quer dizer: as manchetes se contradizem e estão ambas
erradas.
Pois bem: no encontro que mantive
com aqueles escritores, disse-me Lucilo Varejão Filho que só gosta da arte
popular quando recriada por um
grande artista erudito; como é o caso,
acrescento eu, de um Villa-Lobos ou
de um Gilvan Samico. Na hora, falei
alguma coisa do que pensava. Mas retomo, aqui, o assunto, com o objetivo
de tornar mais claras minhas opiniões.
A certa altura do Projeto Cultural
Pernambuco-Brasil, escrevi: "Um autor de folhetos como Francisco Sales
Areda, autor da obra clássica que é
"O Homem da Vaca e o Poder da
Fortuna", é tão importante para a cultura brasileira quanto qualquer poeta
erudito". Evidentemente essas palavras foram escritas sem se levar em
conta o caso de gênios, como Dante,
que não poderiam ser alcançados pela
comparação. Nunca eu insinuaria,
nem de longe, que tanto vale "A Divina Comédia" quanto "O Homem da
Vaca e o Poder da Fortuna". Quem
estava em meu espírito no momento
eram poetas como Olavo Bilac ou Raimundo Correia, que realmente não
me parecem mais importantes para a
cultura brasileira do que José Pacheco, Leandro Gomes de Barros ou
Francisco Sales Areda. Sim, porque
também livros de poemas que contenham sonetos como "As Pombas"
ou "Ouvir Estrelas" não podem,
nem de longe, ser comparados com
"A Vida Nova" ou "A Divina Comédia".
Mas o que acabo de dizer, agora, no
campo da literatura, vale também para as outras artes, em cujo conjunto
tenho um gosto tão exigente que já me
valeu ser acusado de elitista em diversas ocasiões. Não faz muito tempo, incorri em tal acusação porque, indagado se gostava de um certo compositor
idolatrado pelos meios de comunicação, respondi que, na música, gostava
mesmo era de Erik Satie e de Stravinsky; ou, no caso do Brasil, de Luis
Álvares Pinto, José Maurício, Lobo de
Mesquita, Villa-Lobos, Guerra Peixe e
Antônio Madureira. E como me dissessem que, além de músico, o compositor de quem falávamos era "um
grande poeta", retruquei que, para
mim, grandes poetas eram Homero,
Virgílio, Dante, Camões, Jorge de Lima e outros.
Quanto a Amílcar Dória Mattos, disse-me ele que não se interessa por escritores eruditos que, em suas obras,
recriam a arte popular. É um gosto
absolutamente legítimo, este dele.
Existem poetas de gênio, como Shakespeare, que criam suas obras a partir dos romances, baladas e contos populares; dois dos maiores mitos presentes na obra shakespeareana, Ariel e
Calibã, vieram da literatura popular
dos povos saxões. Mas existem outros,
igualmente geniais, como Proust, que
têm posição muito diferente.
A escolha de um caminho ou de outro depende do gosto e da decisão de
cada um de nós. De modo que, quando afirmo minha preferência por Cervantes, Molière, Manuel de Falla ou
Garcia Lorca, que partem do popular,
não estou dizendo que somente esta
linhagem é legítima, estou apenas
afirmando que também ela é legítima.
Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna.
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