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JOSÉ SARNEY
A lingüiça democrática
Na década de 80, na América
Latina, três países eram democráticos: Venezuela, Colômbia e Costa
Rica. Quando da redemocratização da
Argentina e do Brasil, eu e Alfonsín,
na reunião de Foz de Iguaçu, início de
tudo o que viria a ser a nova relação de
integração no continente, com a construção do Mercosul, estabelecemos a
chamada "cláusula democrática". O
primeiro objetivo nosso era fazer voltar a democracia à região. Hoje, todos
os países, com a pergunta sobre Cuba,
respiram ares de liberdade e governos
constituídos em eleições livres.
Num balanço de 20 anos, agora, as
Nações Unidas soltam uma pesquisa
sobre a insatisfação do povo com a democracia. O resultado é trágico: 56,3%
da população acham que "o desenvolvimento econômico é mais importante do que a democracia" e, pior ainda,
46,9% julgam a democracia incapaz
de resolver os problemas dos seus países. No Brasil, apenas 30,6% se consideram democratas.
São números que mostram a falência, para a maioria da população, dos
valores da liberdade e da governança
democrática.
Com a volta da democracia, estava
claro que as aspirações iam muito
além das possibilidades. Caputo,
chanceler argentino em 86, chegou a
questionar a viabilidade das democracias pobres. O que a ONU não revela é
que, em 1990, havia 190 milhões de
miseráveis. Hoje, esse número quase
dobrou, e 43,9% da população vivem
abaixo da linha da pobreza. O Consenso de Washington, aplicado goela
abaixo, mostrou, nesses 15 anos, ser
cruel e ineficaz. A renda per capita da
região ficou estagnada na faixa dos
US$ 3.000. Os países da região renunciaram a seus destinos nacionais, venderam seus patrimônios, subsidiaram
o dólar alto, mantiveram as taxas de
juros em níveis estratosféricos, contraíram e aumentaram a dívida interna e externa. Nasceu um outro "consenso", que é o fracasso do neoliberalismo.
A redemocratização veio acompanhada de uma falta de hierarquia nas
prioridades do Estado, com concessões inatingíveis, como são exemplares as prometidas na Constituição
brasileira de 88, da felicidade pelo milagre de artigo, parágrafo, alínea.
O saldo é esse mal-estar em relação
aos valores democráticos e à desmoralização do Estado de Direito. As lutas
sociais desembocaram no desespero
da violação da propriedade, com invasões e matança de pessoas, com a violência e a guerrilha das cidades, com
os esquadrões justiceiros. Os agentes
do Estado violam os direitos humanos
e justificam o homicídio com a alegação de razões históricas. É difícil não
revoltar-se com um sistema em que há
20% de desempregados, bandidos e
traficantes detentores de arsenais de
guerra, a juventude sem horizontes e
no qual os 10% mais pobres tenham
50 vezes menos que os mais ricos. É
difícil, como dizia Tobias Barreto em
seu discurso de "Manga de Camisa",
falar dos que têm fome. O clima aponta para algo mais grave: a violação cotidiana do regime da lei, que parece
em processo de falência. Rui Barbosa
dizia que, "quando a liberdade é desordem, a lei é a ordem". Não se pode
deixar de estabelecer uma visão de
causa e efeito entre o modelo neoliberal, o caos social e a descrença na democracia.
Noves fora, é melhor fazer como a
Volkswagen faz na Alemanha. Está fabricando mais lingüiças do que automóveis: 520.000 carros e 1.600.000 lingüiças.
É um patético dilema saber o que o
povo julga melhor: democracia, carro
ou lingüiça.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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