São Paulo, sexta-feira, 23 de abril de 2004

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JOSÉ SARNEY

A lingüiça democrática

Na década de 80, na América Latina, três países eram democráticos: Venezuela, Colômbia e Costa Rica. Quando da redemocratização da Argentina e do Brasil, eu e Alfonsín, na reunião de Foz de Iguaçu, início de tudo o que viria a ser a nova relação de integração no continente, com a construção do Mercosul, estabelecemos a chamada "cláusula democrática". O primeiro objetivo nosso era fazer voltar a democracia à região. Hoje, todos os países, com a pergunta sobre Cuba, respiram ares de liberdade e governos constituídos em eleições livres.
Num balanço de 20 anos, agora, as Nações Unidas soltam uma pesquisa sobre a insatisfação do povo com a democracia. O resultado é trágico: 56,3% da população acham que "o desenvolvimento econômico é mais importante do que a democracia" e, pior ainda, 46,9% julgam a democracia incapaz de resolver os problemas dos seus países. No Brasil, apenas 30,6% se consideram democratas.
São números que mostram a falência, para a maioria da população, dos valores da liberdade e da governança democrática.
Com a volta da democracia, estava claro que as aspirações iam muito além das possibilidades. Caputo, chanceler argentino em 86, chegou a questionar a viabilidade das democracias pobres. O que a ONU não revela é que, em 1990, havia 190 milhões de miseráveis. Hoje, esse número quase dobrou, e 43,9% da população vivem abaixo da linha da pobreza. O Consenso de Washington, aplicado goela abaixo, mostrou, nesses 15 anos, ser cruel e ineficaz. A renda per capita da região ficou estagnada na faixa dos US$ 3.000. Os países da região renunciaram a seus destinos nacionais, venderam seus patrimônios, subsidiaram o dólar alto, mantiveram as taxas de juros em níveis estratosféricos, contraíram e aumentaram a dívida interna e externa. Nasceu um outro "consenso", que é o fracasso do neoliberalismo.
A redemocratização veio acompanhada de uma falta de hierarquia nas prioridades do Estado, com concessões inatingíveis, como são exemplares as prometidas na Constituição brasileira de 88, da felicidade pelo milagre de artigo, parágrafo, alínea.
O saldo é esse mal-estar em relação aos valores democráticos e à desmoralização do Estado de Direito. As lutas sociais desembocaram no desespero da violação da propriedade, com invasões e matança de pessoas, com a violência e a guerrilha das cidades, com os esquadrões justiceiros. Os agentes do Estado violam os direitos humanos e justificam o homicídio com a alegação de razões históricas. É difícil não revoltar-se com um sistema em que há 20% de desempregados, bandidos e traficantes detentores de arsenais de guerra, a juventude sem horizontes e no qual os 10% mais pobres tenham 50 vezes menos que os mais ricos. É difícil, como dizia Tobias Barreto em seu discurso de "Manga de Camisa", falar dos que têm fome. O clima aponta para algo mais grave: a violação cotidiana do regime da lei, que parece em processo de falência. Rui Barbosa dizia que, "quando a liberdade é desordem, a lei é a ordem". Não se pode deixar de estabelecer uma visão de causa e efeito entre o modelo neoliberal, o caos social e a descrença na democracia.
Noves fora, é melhor fazer como a Volkswagen faz na Alemanha. Está fabricando mais lingüiças do que automóveis: 520.000 carros e 1.600.000 lingüiças.
É um patético dilema saber o que o povo julga melhor: democracia, carro ou lingüiça.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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