São Paulo, terça-feira, 23 de maio de 2000


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ARIANO SUASSUNA

As cabras, Raduan e eu

No dia em que Marilene Felinto e Raduan Nassar estiveram em minha casa, falei aos dois sobre a fazenda Carnaúba, onde meu primo Manuel Dantas Vilar Filho -Manuelito- cria as mais belas cabras do mundo.
Na excelente reportagem que escreveu sobre nosso encontro, Marilene Felinto disse que "a literatura passou ao longo da conversa (...), que se concentrou mais na criação de cabras do que na criação de livros". Ela mesma, porém, se encarregou de acrescentar depois que Raduan e eu falamos "de cabras e de Dostoiévski" (o que não é pouco, como literatura). Mas, na verdade, acho que tanto para Nassar quanto para mim, "a cabra é o bicho-símbolo dessa cosmologia que vê o Brasil como enredo de um cordel extremado, mas nunca maniqueísta", como escreveu Cláudio Cerri.
De fato, falando sobre uma cabra chamada "Sudanesa" -ou "Schuda"-, diz o narrador de "Lavoura arcaica": "A primeira vez em que vi Sudanesa com meus olhos enfermiços foi num fim de tarde em que a trouxe para fora, ali entre os arbustos floridos que circundavam seu quarto agreste de cortesã; eu a conduzi com cuidados de amante extremado (...); era do seu corpo que passei a cuidar no entardecer, minhas mãos humosas mergulhando nas bacias de unguento de cheiros vários, desaparecendo logo em seguida no pêlo franjado e macio dela; mas não era uma cabra lasciva (...); era uma cabra faceira, era uma cabra de brincos (...); se esculturava o corpo inteiro quando uma haste verde -atravessada na boca paciente- era mastigada não com os dentes, mas com o tempo; e era então uma cabra de pedra (...), era nessa postura mística uma cabra predestinada (...); Schuda, paciente, mais generosa, quando uma haste mais túmida, misteriosa e lúbrica buscava no intercurso o concurso do seu corpo".
Por sua vez, o narrador do "Romance d'a Pedra do Reino" afirma: "Samuel acha feias as cabras sertanejas, incluindo-as no rol dos animais grosseiros e antipoéticos. Clemente também as acha feias; mas exatamente por isso simpatiza com elas: porque, sendo feias, e ósseas, e nervudas, as cabras são um símbolo da secura, da feiúra, dos sentimentos de contestação e revolta do povo sertanejo. Eu, diferentemente dos dois, acho as cabras ásperas e, por isso, belas: uma das cenas mais bonitas, cavaleiras e fortes que já vi em minha vida foi a de um pai-de-chiqueiro enorme e preto cobrindo uma vermelha e nova novilha-de-cabra, num pedaço áspero e bruto de caatinga sertaneja, sobre um "lajeiro" baixo e espalhado, quase rente com o chão, cercado de macambiras e xiquexiques e cheio de pedaços de pedra menores que reluziam ao sol suas faíscas de malacacheta. Essa cena e o choque primordial de áspera beleza que ela me proporcionou mostraram-me, de uma vez para sempre, que a vida é cruel e dura mas bela -e sua beleza está ao alcance de qualquer um, mesmo do mais pobre e bruto dos sertanejos".
Talvez seja então por causa de textos como os dois citados que, falando sobre nós, Marilene Felinto afirmou ter sido o nosso um encontro da "terra roxa de Raduan Nassar e dos cerrados de Guimarães Rosa" com "o sertão de Graciliano Ramos e Ariano Suassuna".


Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna.


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