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ARIANO SUASSUNA
As cabras, Raduan e eu
No dia em que Marilene Felinto e
Raduan Nassar estiveram em minha casa, falei aos dois sobre a fazenda
Carnaúba, onde meu primo Manuel
Dantas Vilar Filho -Manuelito-
cria as mais belas cabras do mundo.
Na excelente reportagem que escreveu sobre nosso encontro, Marilene
Felinto disse que "a literatura passou
ao longo da conversa (...), que se concentrou mais na criação de cabras do
que na criação de livros". Ela mesma,
porém, se encarregou de acrescentar
depois que Raduan e eu falamos "de
cabras e de Dostoiévski" (o que não é
pouco, como literatura). Mas, na verdade, acho que tanto para Nassar
quanto para mim, "a cabra é o bicho-símbolo dessa cosmologia que vê o
Brasil como enredo de um cordel extremado, mas nunca maniqueísta",
como escreveu Cláudio Cerri.
De fato, falando sobre uma cabra
chamada "Sudanesa" -ou "Schuda"-, diz o narrador de "Lavoura arcaica": "A primeira vez em que vi Sudanesa com meus olhos enfermiços
foi num fim de tarde em que a trouxe
para fora, ali entre os arbustos floridos
que circundavam seu quarto agreste
de cortesã; eu a conduzi com cuidados
de amante extremado (...); era do seu
corpo que passei a cuidar no entardecer, minhas mãos humosas mergulhando nas bacias de unguento de
cheiros vários, desaparecendo logo
em seguida no pêlo franjado e macio
dela; mas não era uma cabra lasciva
(...); era uma cabra faceira, era uma cabra de brincos (...); se esculturava o
corpo inteiro quando uma haste verde
-atravessada na boca paciente- era
mastigada não com os dentes, mas
com o tempo; e era então uma cabra
de pedra (...), era nessa postura mística uma cabra predestinada (...); Schuda, paciente, mais generosa, quando
uma haste mais túmida, misteriosa e
lúbrica buscava no intercurso o concurso do seu corpo".
Por sua vez, o narrador do "Romance d'a Pedra do Reino" afirma: "Samuel acha feias as cabras sertanejas,
incluindo-as no rol dos animais grosseiros e antipoéticos. Clemente também as acha feias; mas exatamente
por isso simpatiza com elas: porque,
sendo feias, e ósseas, e nervudas, as cabras são um símbolo da secura, da
feiúra, dos sentimentos de contestação e revolta do povo sertanejo. Eu, diferentemente dos dois, acho as cabras
ásperas e, por isso, belas: uma das cenas mais bonitas, cavaleiras e fortes
que já vi em minha vida foi a de um
pai-de-chiqueiro enorme e preto cobrindo uma vermelha e nova novilha-de-cabra, num pedaço áspero e bruto
de caatinga sertaneja, sobre um "lajeiro" baixo e espalhado, quase rente
com o chão, cercado de macambiras e
xiquexiques e cheio de pedaços de pedra menores que reluziam ao sol suas
faíscas de malacacheta. Essa cena e o
choque primordial de áspera beleza
que ela me proporcionou mostraram-me, de uma vez para sempre, que a vida é cruel e dura mas bela -e sua beleza está ao alcance de qualquer um,
mesmo do mais pobre e bruto dos sertanejos".
Talvez seja então por causa de textos
como os dois citados que, falando sobre nós, Marilene Felinto afirmou ter
sido o nosso um encontro da "terra
roxa de Raduan Nassar e dos cerrados
de Guimarães Rosa" com "o sertão de
Graciliano Ramos e Ariano Suassuna".
Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta
coluna.
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