São Paulo, terça-feira, 23 de maio de 2000


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TENDÊNCIAS/DEBATES

UNIVERSIDADES EM GREVE

Crônica de uma morte anunciada


A mediocridade dos políticos e a miopia dos reitores nos reservam um presente amargo e um futuro insípido


RENATO ORTIZ

A greve das universidades públicas paulistas deixa claro um dilema que necessita ser enfrentado: é possível e desejável manter um ensino e uma pesquisa de qualidade numa sociedade periférica? Para responder devemos nos desvencilhar dos pressupostos ideológicos que vêm marcando o debate sobre o ensino no Brasil.
Há primeiro um argumento cínico, utilizado desde a ditadura, sobretudo pelo governo federal, mas também empregado segundo as conveniências do momento pelo governo estadual, de que a "universidade é coisa de rico".
Como existem vários problemas sociais importantes, saúde, educação primária, violência, decorre desse tipo de argumentação que a universidade deve ser deixada de lado, pois sua situação já é em si privilegiada. Esse é um argumento retórico, que possui, porém, um forte apelo populista, sobretudo conhecendo as desigualdades que marcam a sociedade brasileira. É um argumento vazio, desprovido de concretude, pois os problemas sociais só têm se multiplicado, independentemente do que possa ocorrer no âmbito universitário.
Outro aspecto diz respeito à privatização. Políticos, empreendedores e até recentemente uma parte considerável da mídia escrita e televisiva insistiam na tecla da privatização da universidade. Os problemas financeiros estariam resolvidos e a democratização do acesso assegurada pela livre competição do mercado (como se o mercado não fosse rigidamente estruturado e hierarquizado pela desigualdade da distribuição de renda). Esquece-se nesse caso que no Brasil há muito o ensino superior já está privatizado. Nunca existiram monopólios na área da educação da mesma forma que no passado empresas estatais atuavam em áreas diversas: telefonia, petróleo, estradas de rodagem etc.
A partir da década de 70, o que se vê é uma formidável ascensão das faculdades privadas e, agora, no final dos anos 90, assiste-se à sua expansão no ensino de pós-graduação. As universidades públicas paulistas são uma minoria. A questão é portanto saber: vale a pena defendê-las?
Não tenho a menor dúvida. A universidade é um lugar de cultura e ciência. Ela é um dos poucos espaços autônomos nos quais é ainda possível o exercício da criatividade sem as pressões imediatas da lógica do mercado. As conquistas recentes que tivemos com o projeto Genoma só puderam ser realizadas graças ao auxílio da Fapesp (um órgão público) e ao trabalho árduo de pesquisadores com um grau de formação profissional adquirido ao longo de anos e anos de estudos.
As universidades públicas paulistas concentram ainda a maior parte da produção científica do país -todos os indicadores confirmam esse fato. Se o Brasil pode ser visto como campeão das desigualdades sociais, com distribuição de renda miserável, fome, injustiça, menores abandonados, um dos poucos setores dos quais podemos nos orgulhar encontra-se na esfera acadêmica.
Não existe nenhum país latino-americano -e há pouquíssimos países emergentes- com um sistema de pós-graduação semelhante ao nosso. Com todos os defeitos que ele venha a ter, e existem vários, trata-se de um patrimônio que não pertence apenas aos professores, pesquisadores e alunos. Ele foi construído com dinheiro público, inserindo a universidade dentro de suas responsabilidades para com a sociedade brasileira. É preciso reconhecer que o padrão de ensino e pesquisa que possuímos é custoso e não pode ser reproduzido nas atuais faculdades privadas.
Quando digo isso não tenho a intenção de demonizá-las. Porém a lógica universitária é distinta da lógica mercadológica. Para os que têm alguma predileção pelo modelo de ensino norte-americano, lembro apenas que, sim, Cambridge e Princeton são instituições privadas, mas seria insensato compará-las à brasileira Unip.
A debilitação das universidades públicas nada tem de glorioso, afinal nada existe que possa substituí-las com grandeza. Um eventual declínio nada mais é que uma regressão, um final melancólico. A greve atual, além de seus desdobramentos imediatamente salariais, é um augúrio, é a crônica de uma morte anunciada. Se as coisas permanecerem como estão, as próximas gerações terão acesso a uma universidade carente, uma instituição rotinizada, em nada distinta das faculdades privadas.
Um cineasta europeu disse-me uma vez: "Um país sem cinema não é verdadeiramente um país". Com isso ele queria dizer que o cinema é um veículo que exprime valores e expressões intrínsecas a cada cultura. Eu digo que um país sem uma universidade forte abriu mão de sua própria dignidade, da capacidade de ditar o seu próprio destino. A mediocridade de nossos políticos e a miopia de nossos reitores caminham juntas. Elas nos reservam um presente amargo e um futuro insípido.


Renato Ortiz, 53, doutor em sociologia e antropologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (França), é professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).



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