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São Paulo, sexta-feira, 23 de maio de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Centralismo e democracia, os dilemas do PT

ROBERTO ROMANO

"Não existe , para o revolucionário marxista, contradição entre a moralidade pessoal e os interesses do partido, pois o partido reúne as tarefas e os fins mais elevados da humanidade" (Trotsky).
As notícias falam das lutas entre dirigentes do PT e os ditos radicais. "Governabilidade", exige o Planalto. "Democracia", respondem os acusados. Ambos retomam o desafio que gerou o PT. Este anunciou que inovaria os métodos de liderança e decisão, sem a linha justa ordenada pelo antigo centralismo democrático. Os eventos mostram que a novidade petista ainda é promessa.
O partido significa tudo para o militante que nele investe. Há um bloco emotivo e conceitual, para não falar na comunidade linguística, que une os partícipes da agremiação política. Um militante sem partido está à deriva do mundo. Não irei ao exagero de afirmar que, na mente de um partidário político, existe o mesmo sentimento dos fiéis em face da igreja. É mortal ser excomungado porque "extra ecclesia nulla salus". Mas há remédio para o militante secular: a vida possui organizações políticas similares. Mas é difícil , para quem resistiu no PT, assumir o PSTU ou o PCO. O apego emocional com a matriz é profundo, como se fosse um casamento em regime de comunhão de bens. O divórcio pode ser litigioso.
Grave é a situação dos que perceberam apenas sombras, mentira e corrupção para além dos muros partidários. Tomemos o slogan segundo o qual fora do PT todos eram "farinha do mesmo saco". Sempre alertei os amigos petistas contra essa concepção, a qual lhes traria surpresas desagradáveis. O número dos adeptos aumenta quando um partido vence eleições. Nem todos os neófitos assimilam a moral espartana. Com a vitória nas urnas, o realismo da liderança partidária chegou ao nível explosivo. As juras de combate ao neoliberalismo foram abandonadas. O jacobinismo deu lugar ao Termidor. Surgiram alianças estranhas, como as mantidas com José Sarney e Antonio Carlos Magalhães. José Genoino ecoa as falas de FHC sobre a ética das convicções e outras éticas (seria bom que o presidente do PT lesse diretamente Max Weber, mas talvez não lhe sobre tempo para leituras).


Tomemos o slogan segundo o qual fora do PT todos eram "farinha do mesmo saco". Sempre alertei contra essa concepção


Com o fim das promessas, veio o canto fúnebre do socialismo petista, com um melancólico Termidor. Mas os dirigentes do PT e seus radicais partilham a mesma concepção sobre a disciplina partidária. As regras draconianas contra as minorias foram inscritas no regimento, de comum acordo, porque atendiam à tese que exige obediência da minoria às determinações do maior número.
Sigamos Merleau-Ponty. Ele, no comentário a um texto de Claude Lefort ("As Contradições de Trotsky"), afirma que, se o líder da oposição ao stalinismo não se dedicou à tarefa de impor "a democracia do partido contra as manobras do Comitê Central, não foi por clarividência histórica, mas por "enceguecimento" ("As Aventuras da Dialética")".
O centralismo democrático, anui o filósofo, "não obriga o oponente a deixar o partido ou a mascarar suas idéias, se, ao defendê-las, continua a obedecer" a direção. Óbice: "Observar a regra da disciplina num partido que não mais obedece à democracia, e que se dispunha a eliminar Trotsky por todos os meios, era jogar para perder e dar armas ao adversário". Trotsky ou Heloísa Helena, mudando-se os nomes, "de te fabula narratur". Arremata Merleau-Ponty: "Os minoritários guardavam o direito de defender suas idéias, não o de agir como um partido no interior do partido. Regra que só pode vigorar acima de um certo grau de tensão política, e quando as divergências não seguem para o essencial".
A verdade está no partido -"o laboratório da história". Esse fetiche marcou a consciência de quem seguiu Stálin e dos que defendiam a oposição. "Trotsky no poder manobrou com seus colegas para desonrar a oposição; ele tinha reprimido a comuna de Kronstadt, por que teria hesitado em caluniar Eastmann?" (Merleau-Ponty). O dogma, mais a disciplina que o impunha, era partilhado. A idéia do partido era arriscada porque unia disciplina e democracia. O centralismo democrático seguiu o rumo do primeiro termo contra o segundo. A situação do PT seria diferente se, em vez dos que se formaram em trotskismo, como Antônio Palocci, vencessem os radicais? Todos tiveram a mesma formação, a sua língua é comum.
Mais do que nunca, o problema democrático deve ter sido enfrentado, desde longa data, pelos setores mais amplos do PT e por todos os setores progressistas. Ainda existe tempo para mudar a lógica que levou ao fracasso do campo democrático. A primeira providência é repensar as normas que, nos partidos, regem o trato entre direção e minorias. Se José Genoino assume a face, que não lhe cabe, de Vychinski e os dissidentes são assumidos como se fossem os julgados em Moscou, isso se deve à prática e à idéia da política partidária que os dois lados receberam.
A solução do impasse encontra-se na democracia, sem irenismos ou silêncios obsequiosos. As duas atitudes degradam a vida ética, no PT ou na República brasileira.

Roberto Romano, 57, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp.


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