São Paulo, domingo, 23 de maio de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Sem projeto de nação

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

Existe hoje um sentimento generalizado de frustração em relação ao governo, mas a culpa pela falta de um projeto não pode ser atribuída apenas a ele. É verdade que as esperanças não se concretizaram. Embora tendo sido eleito com uma plataforma de crítica à política econômica anterior, o novo governo deu-lhe a mais estrita continuidade. Na busca de crédito e credibilidade junto a Washington e Nova York, e ao sistema financeiro, o Ministério da Fazenda e o Banco Central submeteram-se ainda mais às suas orientações.
Por um breve momento, a volta do crédito e a queda da inflação deram alento ao governo, embora a diminuição da inflação não decorresse da política de juros elevados, mas do simples fato de que sua elevação fora temporária, causada pela depreciação cambial de 2002. Mas esse alento durou pouco. Em uma democracia, governar só é possível com o apoio do povo e principalmente da sociedade civil, ou seja, das elites políticas em sentido amplo. A legitimidade de um governo não se ganha apenas nas eleições, ela se renova todos os dias no exercício do próprio poder e na reafirmação do apoio da opinião pública.
Há 25 anos o Brasil enfrenta tempos anormais, de alto endividamento externo e interno, estagnação econômica crônica e níveis crescentes de desemprego e insegurança. Nesses momentos, o poder só será exercido se o governo tiver visão, souber debater com a sociedade as grandes questões e tiver a firmeza de escolher um novo caminho.
No momento, no Brasil, isso nos falta. A crise política, desencadeada por um fenômeno localizado de corrupção, evidenciou afinal faltar ao governo um projeto de nação e uma alternativa de política econômica. A sociedade se deu conta de que o governo está desorientado; de que recusa o modelo neoliberal que o antecedeu, mas não tem um modelo nacional alternativo e, na prática, submete-se à ortodoxia convencional.
Durante as eleições havia um diagnóstico que, corretamente, culpava o modelo globalista e neoliberal pela estagnação econômica; e havia a promessa de rever essa política. O diagnóstico e a proposta, entretanto, eram vagos. Sua generalidade talvez fosse suficiente para o momento eleitoral, mas revelou-se pobre quando o novo governo se estabeleceu.
É um equívoco, entretanto, culpar apenas o governo por essa situação patética. Ela reflete a desorientação fundamental das próprias elites brasileiras. Não é apenas o PT que não tem um projeto de nação, são as elites brasileiras que o perderam. Substituíram-no, por algum tempo, pelo projeto neoliberal de enfraquecimento do Estado, mas este fracassou. Mais do que isso, a submissão a Washington e Nova York, e à sua política de crescimento com poupança externa, desorganizou a economia, mantendo-a estagnada e em permanente fragilidade externa e fiscal.


Não é apenas o PT que não tem um projeto de nação, são as elites brasileiras que o perderam
Não é possível fazer a revolução capitalista sem, ao mesmo tempo, empreender a revolução nacional. Todos os países que se desenvolveram no passado passaram por essa dupla transformação. Os países que estão se desenvolvendo recentemente, principalmente na Ásia, não estão fazendo outra coisa.
O desenvolvimento capitalista e nacional, porém, nada tem a ver com o credo neoliberal e globalista que a América Latina aceitou docilmente nos anos 90, enquanto os países asiáticos dinâmicos o recusavam. O extraordinário desenvolvimento da China nos últimos 30 anos é fruto da revolução capitalista e nacional de Deng Xiao Ping, e não da aceitação das políticas econômicas e reformas institucionais promovidas pelo FMI e pelo Banco Mundial. O diretor econômico do Banco Mundial, François Bourguignon, atribuiu, em artigo recente, o êxito da China à adoção das "reformas". Não compreende que a construção do capitalismo na China pouco tem a ver com as reformas que sua instituição promove.
O Brasil tinha todas as condições para se desenvolver nos anos 90, depois do grande processo de ajustamento fiscal e de reforma por que passou, mas não o fez porque se submeteu a uma ideologia antinacional. Em vez de reconstruir o Estado e se reafirmar como nação, para poder retomar o desenvolvimento, o Brasil permitiu que essa ideologia desorganizasse ainda mais o Estado nacional brasileiro. Em vez de conduzir uma política macroeconômica que efetivamente estabilizasse as suas contas externas e públicas, aceitou a "estratégia" de crescimento com poupança externa que valorizou o câmbio, promoveu o consumo e até hoje legitima a manutenção de uma taxa de juros básica absurda.
Nos anos 50 e 60, Celso Furtado e Helio Jaguaribe explicaram o desenvolvimento como um processo de revolução nacional que se expressava na transferência dos centros de decisão para dentro do país. Ao fazerem tal afirmação, baseavam-se na experiência de todos os países que haviam realizado sua revolução capitalista e nacional. Nos anos 80 e 90, porém, a revolução nacional brasileira paralisou-se; e o Brasil ficou sem o conceito de nação.
É inútil, porém, criticar apenas o governo. Muitos dos que agora o acusam de não ter projeto têm como projeto alternativo o neoliberal, que já fracassou em toda a América Latina. Têm em mente um projeto que não atende aos interesses do desenvolvimento capitalista brasileiro, mas aos interesses dos países ricos. É preciso cobrar do governo um projeto, pois cabe a ele a liderança; mas é preciso também discutir qual deve ser esse projeto. Uma estratégia de desenvolvimento bem-sucedida depende essencialmente da existência do conceito de nação -um conceito que foi perdido, mas pode ser resgatado.

Luiz Carlos Bresser-Pereira, 69, é professor de economia da FGV-SP. Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo FHC), além de ministro da Fazenda (governo Sarney). É autor de, entre outras obras, "Desenvolvimento e Crise no Brasil" (Editora 34).


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