São Paulo, domingo, 23 de maio de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Argos x Esparta

FREI BETTO

José Luís Zapatero, presidente do governo espanhol, disse não à coligação bélica que, sob o comando dos EUA, ocupa o Iraque. Antecipou o retorno de suas tropas, antes previsto para 30 de junho. A Espanha não crê que o Conselho de Segurança da ONU seja capaz de suplantar a hegemonia americana no Iraque e, assim, estabelecer as vias da paz imediata. A situação no país ocupado se deteriorou de tal maneira que "as forças espanholas já não podem cumprir sua missão de garantir a segurança do país", anunciou o governo de Zapatero.
Nas pegadas dos 1.218 militares da Espanha, sairão também os 370 enviados por Honduras. Por menos democrático que tenha sido Saddam Hussein, o argumento de combater a ditadura não convém à Casa Branca, que apóia governos autocráticos no mundo árabe e solapou, nos anos 60 e 70, os regimes democráticos da América Latina, incluindo o Brasil. Lançou-se mão, portanto, do pretexto das armas de destruição em massa. O Iraque foi literalmente revirado pelos inspetores da ONU. Não acharam nenhum indício. As armas de que dispunha Saddam Hussein haviam sido ofertados pelos EUA na época em que usaram o ditador como bucha de canhão no confronto com o Irã.
Agora tudo se complica para os EUA, com a revelação das torturas praticadas por soldados e oficiais americanos em prisioneiros iraquianos. As fotos são estarrecedoras e tiram da Casa Branca, na Comissão de Direitos Humanos da ONU em Genebra, o papel de tradicional denunciante para ocupar o lugar de denunciada. A tortura é um crime hediondo. Quem passou pelos cárceres da ditadura brasileira sabe que a Escola das Américas formou torturadores brasileiros e que a tortura sempre foi admitida pela CIA como método habitual de interrogatório. A diferença é que, antes, a nudez do rei nunca tinha sido tão notoriamente fotografada como agora.
A Espanha diz não à guerra, como declarou não ao terrorismo, reagindo ao 11 de março de modo contrário à reação americana perante o 11 de Setembro. O governo dos EUA deixou-se intimidar e disseminou o medo em sua população, reforçando obsessivamente a segurança interna. Já os espanhóis foram às ruas, numa demonstração ostensiva de não ao medo e sim à liberdade.


O terror não tem endereço. É ubíquo, como as partículas quânticas que nunca se encontram onde são localizadas
O terrorismo é a subversão das leis da guerra. Bush confessou, perante o Congresso, que não lhe passou pela cabeça que aviões fossem usados como mísseis. Devia ter aprendido a lição de que o terror não tem endereço. É ubíquo, como as partículas quânticas que nunca se encontram onde são localizadas. Inútil arrasar o Iraque. Não é lá que se encontra Bin Laden. Ainda que o saudita seja assassinado, não será a morte do terror. Este desarticula Exércitos e todas as teorias militares, dos ensinamentos de "A Arte da Guerra", do general chinês Sun Tzu, publicado cerca de 500 a.C., ao tratado "Sobre a Guerra", de autoria de outro general, o alemão Carl von Clausewitz, editado em 1833.
O terror rompe as fronteiras dos campos de batalha, agora alargadas para o centro de Nova York ou as estações ferroviárias de Madri. Suas táticas desarmam estratégias, sua invisibilidade desorienta as forças convencionais, sua irracionalidade surpreende a nossa lógica. Só há duas maneiras de combater o terror. A primeira, entrando no seu jogo e abraçando a lei de talião: o terrorismo de Estado. É uma opção imoral e inútil. Sacrifica inocentes, favorece a corrupção e aniquila, antes, o governo que o acoberta. A segunda, mais difícil e eficaz, é combater as suas causas -desigualdades, discriminações, fundamentalismos e exclusões. Enfim, seguir o conselho milenar do profeta Isaías, promover a justiça para obter a paz.
Conta Heródoto que, em 546 a.C., a cidade de Argos entrou em conflito com Esparta. No campo de batalha havia 300 soldados de cada lado, em respeito ao equilíbrio de forças. A disputa, acompanhada à distância por espartanos e argivos, terminou com apenas três sobreviventes: um espartano e dois argivos. O primeiro manteve-se no terreno da guerra, enquanto a dupla inimiga retornou a Argos. Esparta comemorou a vitória por não fugir do campo de batalha. Argos também proclamou-se vencedora, por sua superioridade numérica no balanço final. Essa competição retórica transmutou-se em arrogância, que se fez prepotência, que acabou numa batalha renhida entre os habitantes das duas cidades.
Se não prestarmos atenção no exemplo da Espanha, logo todos nós deixaremos de ser espectadores para assumir o protagonismo na carnificina geral. Ontem foram os hereges e judeus; hoje, os muçulmanos e árabes; amanhã... Como Argos e Esparta, estaremos nos enfrentando segundo a lógica do terror, que imprime ao genocídio e ao suicídio um gosto necrófilo de vitória.

Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, 59, frade dominicano, escritor, é assessor especial da Presidência da República. É autor, entre outras obras, de "Típicos Tipos - coletânea de perfis literários" (A Girafa).




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