São Paulo, sexta-feira, 23 de junho de 2000


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Saúde roubada


Para manter a estrutura viciada do PAS, secretaria e secretário tinham preço e havia uma rede interna de cumplicidade


JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

Tenho um compromisso de vida com a saúde. Não posso me omitir -por mais penoso que seja- de fazer o diagnóstico e indicar a terapêutica para a saúde paulistana, após vivenciá-la nas suas entranhas. Com a implantação do PAS (Plano de Atendimento à Saúde), 10.400 funcionários, entre médicos, enfermeiros e outros -mais da metade dos trabalhadores da área de saúde que ideologicamente não o aceitaram-, foram afastados da Secretaria Municipal da Saúde (SMS) de São Paulo, transferidos para outros órgãos da prefeitura, com seus vencimentos mantidos.
Para ocupar esses claros, foi criada uma terceira cooperativa do PAS, que contratou o mesmo número de funcionários, pagando assim a dois servidores, enquanto o sistema conta apenas com o trabalho de um. Outra absurda espoliação foi a perda do repasse das verbas federais e estaduais às quais a SMS tem direito e não recebe porque o PAS é considerado incompatível com os princípios do SUS. No total, seriam cerca de R$ 400 milhões por ano, que engrossariam o orçamento de R$ 800 milhões destinado à saúde pela Prefeitura de São Paulo.
Essas espoliações acontecem há mais de cinco anos e a elas precisamos acrescentar o pior: os desmandos decorrentes da estrutura do PAS, que permite transformar dinheiro público em dinheiro privado. Distorções graves foram identificadas em processos da secretaria relativos às Cooperpas 1, 2, 5, 6, 15 e no hospital Falcão Bauer, cujo aluguel está sendo pago há mais de um ano, sem que ele funcione.
Nos oito dias que estivemos à frente da pasta, não fomos procurados, uma só vez, para discutir política de saúde, mas percebemos claramente que, para manter a estrutura viciada do PAS, secretaria e secretário tinham preço e havia uma rede interna de cumplicidade. No gabinete, funcionários recebiam altos valores em dinheiro como complementação do salário mensal, sem nenhuma assinatura de recibo.
Despesas superfaturadas eram comuns, como a contratação da Fundação Getúlio Vargas por R$ 1,2 milhão, cujos serviços poderiam ser realizados por outra instituição por apenas R$ 300 mil, conforme registro em processo. Terceirizações havia de todas as ordens e muito estranhas. Em minha breve passagem anulei uma, relativa à contratação de um consórcio de empresas para o controle da dengue, que oferecia 650 agentes operacionais ao custo de R$ 1 milhão/mês. Cabe destacar que a secretaria tem mais de 4.000 servidores treinados para essa tarefa, que foram transferidos para outros órgãos da prefeitura.
Isso leva a uma despolítica de saúde e à piora e diminuição gradativas do atendimento. Entretanto, o interesse de manter o PAS é tão grande que anuncia-se o seu fim com o Sims, que é exatamente igual ao PAS, revitalizado e centralizado. E, quando apregoam que o PAS está sendo municipalizado, apenas devolvem para o sistema os centros de saúde mais problemáticos e não aceitos pelas cooperativas, numa atitude que visa sabotar a municipalização e o SUS.
Cria-se, dessa forma, uma enorme distância entre o atendimento da demanda real -necessário e pago ao PAS com recursos públicos na forma de R$ 10 por habitante/mês- e o atendimento efetivamente oferecido, limitado à "capacidade instalada" -termo cunhado cinicamente e definido pelas "condições possíveis" de atendimento, que são cada vez menores em face da incompetência, incúria com os recursos públicos e total falta de sensibilidade dos dirigentes de saúde em relação ao sofrimento da população pobre e doente.
O cidadão não reclama porque na cultura popular persiste a mentalidade filantrópica de que "saúde é um favor" pelo que se agradece quando é oferecido e que pouco se reivindica quando falta. Além do mais, as necessidades reais -não percebidas pelos usuários- são ignoradas pelos gestores do PAS, que estão submetidos unicamente à lógica do lucro e não oferecem prevenção, diagnóstico precoce, atenção integral e tampouco ações de maior complexidade, compatíveis com as necessidades que são muito mais amplas que aquelas sentidas pelos usuários.
Quando se faz o diagnóstico do Sistema Municipal de Saúde, verdadeira "beleza paulistana", passa-se a não estranhar dados absurdos como o aumento de 100% da mortalidade infantil detectado pela Pastoral do Menor nas regiões periféricas da cidade, nos últimos 12 meses, e o crescimento de 23% da mortalidade materna nos últimos cinco anos, conforme publicação do Comitê de Mortalidade Materna da Prefeitura Municipal de São Paulo.
Soluções existem, não são fáceis, mas são possíveis e poderiam (deveriam) ser implantadas imediatamente. Se acrescentarmos aos R$ 800 milhões do orçamento da SMS os R$ 400 milhões que não chegam por causa do PAS, teremos R$ 16/usuário/mês, suficientes para oferecer saúde de qualidade para todos. Há ilhas de excelência em recursos humanos na SMS, como o Coas, os núcleos de saúde mental, da mulher, do trabalho, da Aids e muitos outros, ávidos por ser aproveitadas em projetos sérios.
A atenção primária, que está sucateada, precisa funcionar em moldes corretos e modernos, integrando-se o atendimento da demanda sintomática às intervenções epidemiológicas preventivas e de detecção precoce, não só nos postos de saúde da prefeitura como em todos os do PAS. As unidades, aliás, deveriam retornar imediatamente para a prefeitura, e as do Estado deveriam ser progressivamente municipalizadas. Essas unidades básicas receberiam parte dos 10.400 trabalhadores de saúde, cujo afastamento cessaria imediatamente.
Organizando a atenção primária de acordo com as características corretas, não só aliviaríamos os hospitais e prontos-socorros como também eles atenderiam em melhores condições a demanda filtrada pelos centros de saúde. Nada disso será possível se não acabarem imediatamente a utilização inadequada de verbas e o conflito intransponível de pagar os módulos por valores fixos, que estimula a realização de um menor número de atendimentos de todas as ordens, para que haja maior lucro.
A permanência do PAS -bueiro pelo qual escoam quantias enormes de recursos- é um impedimento frontal ao processo de mudança. Ele chegou a um tal estado de deterioração que a única solução para corrigi-lo seria promover imediatamente o seu fim, o que já estava definido com Regis de Oliveira. E fazê-lo no prazo máximo de 90 dias, período necessário para a reorganização interna do pessoal, com revisão salarial, compra de materiais e serviços. Tudo estava programado, escrito e decidido, com uma agenda definida, quando, em uma tarde de terça-feira, acordamos dessa utopia realizável. O PAS pode ter sido uma idéia bem-intencionada, mas dele só devem persistir os salários dignos aos trabalhadores de saúde, que podem ser conseguidos com verbas do Fundes e aumento da produtividade.


José Aristodemo Pinotti, 65, é professor titular e chefe do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da USP. Foi deputado federal, secretário da Saúde e da Educação do Estado de São Paulo, secretário municipal da Saúde e reitor da Unicamp.




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