São Paulo, sexta-feira, 23 de junho de 2000 |
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Deus?
FRANCISCO CATÃO A questão está presente no íntimo de todo ser humano. Não que todos acreditem em Deus. Há, mesmo, grandes religiões sem Deus. E quantos são aqueles que, em luta contra a opressão e contra a mediocridade, em nome da liberdade e da dignidade humana, têm o descortino e a coragem de negar os deuses do vulgar. Impressionado com o fideísmo de seus contemporâneos, que defendiam a idéia de que não se pode negar Deus sem ir contra as evidências da razão, mas ao mesmo tempo convencido de que o ser humano é chamado a algo que está além de tudo quanto pensamos e com que podemos lidar, o mais famoso, talvez, dos pensadores medievais, Tomás de Aquino, ensina, no limiar da "Suma Teológica", que se pode divisar, no horizonte do pensamento, não Deus, mas uma realidade transcendente a que se acostumou a chamar de Deus. Noutras palavras, Deus não é um sujeito cuja existência se possa provar, mas o nome que se dá à dimensão transcendente do ser humano e do mundo, na tradição cultural e religiosa judaico-cristã. Mas a grande tentação da religião é absolutizar a imagem que se tem de Deus, condenando muitas vezes com a pecha de ateísmo os que, percebendo a inanidade da imagem absolutizada, a negam, em nome dos autênticos valores humanos. Na Antiguidade os cristãos foram condenados por seu ateísmo. Hoje, mancomunados com a cultura hegemônica, não só se julgam os representantes de Deus na terra como chegam a divinizar a própria religião, esquecendo até o catecismo, que sublinha com ênfase que não se pode crer na Igreja, mas somente em Deus, no Pai, Filho e Espírito Santo, pois a Igreja, por mais que seja, é criatura de Deus, e não se pode confundi-la com Deus (nº 750). Muitos homens da Igreja, como transparece de sua linguagem, estão tão identificados com o próprio poder que têm dificuldade em admitir esse ensinamento! Quem, porém, o lembrou ultimamente foi o próprio cardeal Ratzinger, presidente do organismo romano responsável pela ortodoxia na Igreja. Em conferência pronunciada em Roma, no dia 27 de fevereiro, declarava que o Concílio "quis claramente inserir o discurso sobre a Igreja no discurso sobre Deus, subordinando inteiramente o primeiro ao segundo. A doutrina da Igreja faz parte da doutrina sobre Deus". "O mais grave, porém", continua Ratzinger, "é que não se tem levado a sério essa perspectiva na aplicação do Concílio. A Igreja tem sido entendida como um absoluto", mascarando, acrescentaríamos nós, o absoluto de Deus. Conferiu-se, segundo Ratzinger, à idéia de povo de Deus um significado sobretudo sociológico e político, acentuando a dessolidarização da Igreja das elites autocráticas e lançando-a na aventura da transformação revolucionária da sociedade, por ser povo. Surgem, em consequência, no âmbito do cristianismo, as mais variadas teorias históricas, sociológicas e políticas sobre a Igreja, que brilham como especiosos "fogos de artifício", diz literalmente o cardeal, na mente de inúmeros autores cristãos desatentos. Se assim fosse, conclui, a Igreja, pura mobilização popular, seria uma organização política e como tal "supérflua", por ter abandonado a referência a Deus, que lhe é essencial. O grande desafio, hoje, é como falar de Deus. O maior obstáculo, porém, não é a negação de Deus, mas são as imagens de Deus que nos propõem as muitas religiões que se oferecem aos humanos, na aldeia global da humanidade. Compreende-se o sucesso do budismo, por exemplo, por ser uma sabedoria voltada para o despertar do espírito, que não se embaraça com nenhuma imagem de Deus, a ponto de muitos o considerarem uma religião sem Deus, mas de maneira alguma atéia. Quem sabe hoje, em face dos grandes desafios humanos, não seria mais divino e mais humano alimentarmos, no íntimo do coração, as verdadeiras razões de viver, a começar pela nossa sede de paz, aceitarmos a laicidade de nosso empenho em favor de uma sociedade mais justa e reconhecer a realidade que está além de tudo quanto podemos pensar e com que podemos lidar, segundo o ensinamento da própria sabedoria cristã, que vê no silêncio o gesto mais autêntico de louvor e de reconhecimento que se possa prestar a Deus: "Tibi silentium laus"! Francisco Catão, 73, teólogo, é doutor pela Universidade de Estrasburgo (França) e professor do Instituto Teológico Pio 11, em São Paulo. Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES José Aristodemo Pinotti: Saúde roubada Próximo Texto: Erramos Índice |
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