São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O terceiro ângulo


O Egito e a Jordânia receberam de Israel toda a terra e toda a água sem usar o instrumento do terror


SHIMON PERES

A estratégia atual está passando por um processo similar àquele que caracteriza a economia contemporânea: está se tornando cada vez mais global. Quando a economia começou a se apoiar mais na ciência do que na terra, as fronteiras físicas tornaram-se crescentemente borradas. O mesmo é válido para as fronteiras políticas.
Mesmo quando a economia se tornou global, os governos permaneceram nacionais, criando uma disparidade entre ambos. A privatização serviu para preencher uma brecha: companhias particulares tornaram-se multinacionais, de modo a se integrarem na rede global e se desligarem das restrições da economia nacional.
Atualmente, a estratégia está se movendo de um mundo em que há inimigos nacionais a um em que há perigos globais. Ainda assim, enquanto Exércitos nacionais foram criados para combater os inimigos nacionais, não haverá uma resposta apropriada aos perigos globais.
A partir do momento em que mísseis balísticos entraram na equação, o âmbito balístico tornou-se não menos importante do que a proximidade territorial. E, a partir do momento em que os mísseis foram equipados com ogivas não-convencionais, o valor da vantagem quantitativa nacional acumulativa diminuiu, enquanto o medo, que não pode ser medido, cresceu. Isso também se aplica ao terror.
O terror tem a capacidade de atingir um lugar muito distante de sua base sem aviso prévio. Em outras palavras, o terror também se tornou de natureza global. Exceto por que, diversamente da economia, a estratégia não pode ser privatizada. Companhias particulares não podem proporcionar segurança nacional. E, se armas sofisticadas fossem colocadas à disposição de companhias privadas, a unidade da nação seria ameaçada e a habilidade do Estado de servir como único braço de segurança com controle pelas armas e por aqueles que as usam seria solapada.
De perto, a imagem é ainda mais complexa: de fato, também a estratégia é privatizada, mas só do lado do agressor. A organização de Bin Laden, por exemplo, é uma organização privatizada; não opera sob a jurisdição de um Estado ou da lei e seu braço pode atingir muitos cantos do mundo.
Por outro lado, a defesa diante do terror não pode ser privatizada. O mundo compreende que, a fim de se proteger, é necessário operar no âmbito de responsabilidade nacional, regional e global. Ou, mais precisamente, as regras que se aplicam à economia também se aplicam à estratégia e, enquanto cada nação deve estar preparada para se defender, deve também participar dos esforços cooperativos para enfrentar os perigos extraterritoriais.
O Oriente Médio embarcou em um processo de estratégia globalizada antes que desenvolvesse a capacidade de participar de uma economia global. Isso significa que deve enfrentar os perigos crescentes das novas ameaças atuais, enquanto ainda está atrasado em sua habilidade de explorar o potencial da nova economia.
A região está ficando saturada de mísseis balísticos, o que significa que a proximidade territorial é menos significativa que o alcance dos mísseis. E está começando a se municiar com ogivas não-convencionais. Já está repleto de células terroristas integradas a uma rede global.
O Oriente Médio está se tornando um problema global, e não apenas local. Por isso não é surpreendente que uma iniciativa extra-regional esteja surgindo para lidar com a região.
É assim que o "Quarteto" foi criado recentemente (composto pelos Estados Unidos, União Européia, Rússia e a ONU). Não é ainda um corpo formalmente fundado, mas tem o potencial de se tornar institucionalizado. Os quatro membros reconhecem a liderança norte-americana. E os Estados Unidos, por sua vez, reconhecem a necessidade de parcerias. O Quarteto não é produto de uma iniciativa árabe ou israelense, mas despertou das necessidades da parceria, e nem árabes nem Israel poderiam ou deveriam voltar-lhe as costas.
O interesse claro do Quarteto é abater as chamas atiçadas pelo conflito e evitar que o terrorismo se espalhe e que as armas, que têm o potencial de criar uma faísca para os explosivos, se disseminem. O potencial do grupo não deveria ser menosprezado. Não estou me referindo especificamente à sua força militar ou à sua prontidão em despachar um Exército ao Oriente Médio.
Um Exército não pode substituir um acordo. Nem pode controlar a ausência de um acordo. Mas o Quarteto pode influir, graças à concessão -ou supressão- de ajuda financeira e política.
As regras do jogo, no Oriente Médio, estão mudando. Em vez de um cenário retratando um conflito entre dois inimigos, há agora três jogadores: os dois lados, mais o envolvimento global, na forma do Quarteto, representando o terceiro ângulo.
Não estamos interessados em ver a promoção do terror ou a proliferação de armas não-convencionais. Porque, na ausência do terror e de mísseis, poderíamos e poderemos obter paz real com os palestinos e com o mundo árabe. O terror é um obstáculo à paz, também, para os palestinos. Cada vez que alguma organização dispara ou perpetra atos de terror, ela solapa a credibilidade dos objetivos palestinos.
O Egito e a Jordânia receberam de Israel toda a terra e toda a água sem usar o instrumento do terror. Também aos palestinos foi oferecida a oportunidade de estabelecer um Estado e de receber praticamente todos os territórios sem recorrer ao terror. Mas eles rejeitaram a proposta: permitiram às organizações terroristas destruir a credibilidade da agenda palestina, forçando Israel a fazer considerações de segurança antes das políticas.
Talvez, por meio do novo triângulo, sejamos capazes de formar uma parceria firme contra os perigos e gerar uma oportunidade próxima para reavivar o processo de paz. Isso ajudará a nos sobrepormos à fragilidade política atual, que está afetando ambos os lados e pela qual ambos os povos estão pagando um preço pesado. Se retomarmos as negociações políticas, os dois povos poderão viver em paz lado a lado e prosperar.


Shimon Peres é ministro das Relações Exteriores de Israel.


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