São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Eleição não é "reality show"


Como o passado não determina o futuro, apenas o orienta, a manipulação demagógica é um risco inevitável


TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR.

A eleição por escrutínio secreto e universal é o modo como as democracias respondem ao problema da escolha da direção política da sociedade. As Constituições proclamam, nesse sentido, o princípio da soberania popular: todo poder emana do povo e em seu nome será exercido.
A eleição é uma conquista histórica. Trata-se de um procedimento legitimador do poder, capaz de enfrentar esse complexo de pressões múltiplas ditadas por interesses divergentes de toda ordem, aspirações comuns e decepções inevitáveis. A eleição traz a público um embate colossal de posicionamentos, em tese, porém, de uma forma controlável. Nela, os temas candentes da vida comunitária são tratados de modo amplo, sem limitações, ressalvadas as regras inerentes a um jogo em que a liberdade é garantida contra qualquer forma de opressão capaz de inviabilizá-la. Por isso é um jogo cujo regramento tem por fim equalizá-la ao alcance de todos.
Nesse procedimento passado e futuro, conferem sentido ao jogo político. Pela eleição, o passado é julgado em nome de um projeto futuro. O passado é concreto e visível. Mas o futuro é sempre incerto e aberto. Por isso, numa eleição, os comprometimentos estão sujeitos a variáveis sempre sob o risco de manipulação. A promessa, nesses termos, faz parte do jogo e seu instrumento de controle, para o eleitor, é o passado. Mas, como o passado não determina o futuro, apenas o orienta, a manipulação demagógica é um risco inevitável.
A possibilidade de esse risco ser controlável está na extensão em que os conflitos venham a ser apurados e neutralizados. Apurados, no sentido de sua manifestação irrestrita. Neutralizados, desde que não se transformem em conflitos compactos, isto é, conflitos que obscureçam os demais, tornando o processo uma escolha de um tudo ou nada.
Uma forma razoável de enfrentar esse problema está no modo como se organiza o exercício da soberania popular. É preciso entender que a escolha dos postos dirigentes não se reduz à eleição popular, embora tenha nela o seu centro irradiador de legitimidade. O Poder Judiciário tem formas próprias e, no Poder Executivo, o concurso público é um processo com regras e critérios peculiares. A eleição política, ela mesma, tem um problema de alternativa dos períodos de escolha que também deve ser levado em consideração.
Quanto a esse tema, a forma compacta de eleição nacional, em que Congresso, presidente, governadores e assembléias estaduais são votados em uma só vez, se, de um lado, tem uma vantagem quanto a custos, de outro, traz problemas de enfrentamento dos conflitos. A simultaneidade torna compacta a escolha e o risco dos conflitos compactos cresce. Com isso, surge uma espécie de convergência que tende a aglutinar as questões em debate para um endereço único: a Presidência da República.
A impressão é de que o eleito comandará o país como um todo, como se o poder fosse, compactamente, exercido na sua figura. Isso obscurece o fenômeno do exercício, não permitindo que o eleitor perceba que a capacidade política está nas relações de coordenação, e não de subordinação.
O problema está em que, com isso, o sistema político acaba afetando os demais sistemas, como o econômico ou o financeiro, e vice-versa. E, em termos de legitimação, cria a impressão de que o jogo de coordenação dos diversos centros do poder político não passa de um jogo de favores.
Por sua vez, a falta de autonomia de certos cargos dirigentes no plano do Executivo, em que decisão política e decisão técnica têm de guardar alguma distância, ativa a importância das crises. Por exemplo, a debatida autonomia do Banco Central é um dos elementos capazes de dar conta desse problema.
A experiência de outros países mostra que a coincidência na escolha presidencial com alterações conjunturais na direção do Banco Central deve ser evitada, até porque, assim, a percepção de que uma eleição não é um jogo de tudo ou nada pode ser denunciada. Afinal, o sistema de freios mútuos, próprio da chamada divisão dos poderes, no mundo complexo da atualidade, tem de ter mais nuances do que a tradicional tripartição conhece.
Disso não escapa o Poder Judiciário, cuja politização é, hoje, um fato e tem de ser enfrentada nesse conjunto.
O importante, afinal, é ver que o poder centrado na soberania popular tem de encontrar explicações adequadas e transparentes, de tal modo que a eleição deixe de ser um espetáculo de TV em que o eleitor, mesmo decidindo, não passa de um espectador.


Tercio Sampaio Ferraz Júnior, 60, advogado, é professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP. Foi procurador-geral da Fazenda Nacional (governos Collor e Itamar).


Texto Anterior:
TENDÊNCIAS/DEBATES
Shimon Peres: O terceiro ângulo

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.