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BORIS FAUSTO
Traição ou continuidade?
Era no tempo das grandes mobilizações operárias do ABC. Por
aqui andava um brazilianista americano de reputada qualidade e esquerdista inflexível, com aquela inflexibilidade dos que não têm vez em seu país.
Estava convencido de que a luta de
classes era o motor da história, de que
o capitalismo entraria em crise irremediável, de que a classe operária redimiria a humanidade ao redimir a si
própria. Só não lembro, para dizer a
verdade, se ia ao ponto de defender a
ditadura do proletariado.
Entusiasmado com as mobilizações
operárias -creio que estávamos em
1979-, meu amigo brazilianista resolveu ir ao comício de 1º de Maio no
ABC. Informou-se aqui e ali, tomou
um ônibus e, principalmente, tomou
um banho de massa. Voltou feliz, pois
aquela multidão com quem se misturara estava próxima da classe operária
capaz de realizar seu destino histórico,
bem distante de sua homóloga americana, embalada no sonho da ascensão
individual e do consumismo.
Mas o amigo brazilianista era suficientemente sagaz e estabelecia diferenças. Elas surgiram quando lhe perguntei que tal lhe parecera Lula, que
amigos ou adversários já apontavam
como a principal figura do novo sindicalismo. Para minha surpresa, respondeu que a estrela do comício fora
Benedito Marcilio, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André, cujo discurso sem meias palavras
contribuíra para elevar o nível de
consciência dos trabalhadores, partindo do princípio básico da luta de classes.
Como meu amigo brazilianista se
calasse sobre Lula, insisti na pergunta.
O "Lulo" (assim mesmo) está bem
-disse-me ele, com certa condescendência-, mas seu discurso foi meio
pragmático e cheirou a colaboração
de classe. Rematando, prognosticou
que "Lulo" não teria o futuro de Marcilio.
Quase seria desnecessário insistir no
fato de que, em termos de percurso individual, meu amigo brazilianista deixou-se levar pelo encanto da ideologia. Não é que Marcilio tenha feito carreira desprezível como líder sindical e
deputado, em cuja campanha colaboraram figuras da extrema esquerda.
Porém, Lula converteu-se no presidente Lula e, sob esse aspecto, não é
preciso dizer mais.
Mas há outro aspecto -o do conteúdo da fala do Lula, líder sindical-
revelador da sutileza e da premonição
de meu amigo brazilianista. A tal ponto, que sua observação, feita há mais
de 20 anos, atualiza-se nos dias que
correm, em meio à controvérsia sobre
o comportamento presidencial que
agita o PT e seus aliados de esquerda.
A observação se presta a pelo menos
duas interpretações contrastantes. Para os críticos de hoje, sempre no interior da esquerda, a fala sindical de Lula
poderia representar um remoto
exemplo do "germe da traição". Para
seus defensores, um indício de coerência pragmática, que não seria herança imposta por seu antecessor.
Mas, para quem é estranho a essa
controvérsia, por que não pensar em
um Lula que oscilou, verbalmente, entre o pragmatismo e o radicalismo,
tendo optado pelo primeiro, ao menos por ora, na chegada ao poder?
Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta
coluna.
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