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São Paulo, segunda-feira, 23 de junho de 2003

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BORIS FAUSTO

Traição ou continuidade?

Era no tempo das grandes mobilizações operárias do ABC. Por aqui andava um brazilianista americano de reputada qualidade e esquerdista inflexível, com aquela inflexibilidade dos que não têm vez em seu país.
Estava convencido de que a luta de classes era o motor da história, de que o capitalismo entraria em crise irremediável, de que a classe operária redimiria a humanidade ao redimir a si própria. Só não lembro, para dizer a verdade, se ia ao ponto de defender a ditadura do proletariado.
Entusiasmado com as mobilizações operárias -creio que estávamos em 1979-, meu amigo brazilianista resolveu ir ao comício de 1º de Maio no ABC. Informou-se aqui e ali, tomou um ônibus e, principalmente, tomou um banho de massa. Voltou feliz, pois aquela multidão com quem se misturara estava próxima da classe operária capaz de realizar seu destino histórico, bem distante de sua homóloga americana, embalada no sonho da ascensão individual e do consumismo.
Mas o amigo brazilianista era suficientemente sagaz e estabelecia diferenças. Elas surgiram quando lhe perguntei que tal lhe parecera Lula, que amigos ou adversários já apontavam como a principal figura do novo sindicalismo. Para minha surpresa, respondeu que a estrela do comício fora Benedito Marcilio, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André, cujo discurso sem meias palavras contribuíra para elevar o nível de consciência dos trabalhadores, partindo do princípio básico da luta de classes.
Como meu amigo brazilianista se calasse sobre Lula, insisti na pergunta. O "Lulo" (assim mesmo) está bem -disse-me ele, com certa condescendência-, mas seu discurso foi meio pragmático e cheirou a colaboração de classe. Rematando, prognosticou que "Lulo" não teria o futuro de Marcilio.
Quase seria desnecessário insistir no fato de que, em termos de percurso individual, meu amigo brazilianista deixou-se levar pelo encanto da ideologia. Não é que Marcilio tenha feito carreira desprezível como líder sindical e deputado, em cuja campanha colaboraram figuras da extrema esquerda. Porém, Lula converteu-se no presidente Lula e, sob esse aspecto, não é preciso dizer mais.
Mas há outro aspecto -o do conteúdo da fala do Lula, líder sindical- revelador da sutileza e da premonição de meu amigo brazilianista. A tal ponto, que sua observação, feita há mais de 20 anos, atualiza-se nos dias que correm, em meio à controvérsia sobre o comportamento presidencial que agita o PT e seus aliados de esquerda.
A observação se presta a pelo menos duas interpretações contrastantes. Para os críticos de hoje, sempre no interior da esquerda, a fala sindical de Lula poderia representar um remoto exemplo do "germe da traição". Para seus defensores, um indício de coerência pragmática, que não seria herança imposta por seu antecessor.
Mas, para quem é estranho a essa controvérsia, por que não pensar em um Lula que oscilou, verbalmente, entre o pragmatismo e o radicalismo, tendo optado pelo primeiro, ao menos por ora, na chegada ao poder?


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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