São Paulo, segunda-feira, 23 de julho de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Defendam Congonhas!

GERALD THOMAS


O que está errado não é o aeroporto, é o que deixaram crescer em torno dele: a floresta de concreto do terceiro mundo emergente


A ANTROPOFAGIA foi um movimento artístico de vanguarda lindo. Nasceu no início do século passado, mais ou menos com a aviação brasileira. Absorvia todas as influências das artes mundiais. Digeria tudo, comia tudo e, principalmente, "devolvia" aquilo tudo que havia absorvido com uma perspicaz inteligência. Mas a autofagia, que não chega a ser movimento, e sim um claro sinal de uma terrível baixa auto-estima nos tempos de hoje num país em trapalhadas políticas e perda de identidade, ah!, essa autofagia é terrível.
O Brasil está, digo, ficou triste. Destrói-se tudo, até aquilo que ainda está erguido, ereto, assim como se fosse um autoboicote. E por quê? Boa pergunta. Agora alguém aí quer que se feche o aeroporto de Congonhas. Que ridículo!
Assim como o movimento modernista, o Brasil e a Varig conquistaram um lugar muito peculiar: um novo conceito de aviação, esse da ponte aérea que inventaram, de pegar um avião no centro de uma cidade e aterrissar no centro de outra metrópole.
A essas alturas (sem trocadilhos), já está mais que provado que o trágico acidente da TAM nada tem a ver com o aeroporto. O piloto estava simplesmente indo numa velocidade rápida demais e tentou arremeter e não conseguiu e num gesto quase que edipiano foi se chocar com o prédio "mãe", da própria TAM, matando mais funcionários da própria empresa. E Congonhas com isso?
Se fosse pela medida da pista, o Santos Dumont teria que fechar anteontem. Ah, mas termina em água, diriam. Não, eu respondo. Um bom piloto sabe frear um Airbus ou um Boeing em ambas as pistas, como temos visto nesses anos todos. Ou será que não?
A Varig estaria completando 80 anos agora. Nas oito décadas, seu "track record", assim como o de Congonhas, é quase impecável. Descontando o famoso acidente de Paris e aquele que "crash" em plena floresta amazônica porque se escutava um jogo de futebol no cockpit.
No entanto, em sua curtíssima existência, a TAM tem um terrível "track record". Seus aviões caem e sempre há um final trágico. Mas a explicação é simples. Pouco treinamento, pouca tradição e uma ganância enorme de querer montar uma empresa grande demais com pouco know-how em curto espaço de tempo.
Simplesmente não dá! Ou melhor, dá nisso!
E aí, claro, leio que até que enfim anunciaram um milagroso pacote para salvar a aviação brasileira. Deram a Congonhas o troféu bode expiatório, disseram que o bode está fedido e pretendem tirar o bode da sala, limpando a barra de quem a tem suja.
Mas o que está errado com o aeroporto de Congonhas não é o aeroporto, mas sim o que deixaram crescer em torno dele: a floresta de concreto do terceiro mundo emergente. A desgraçada conivência das várias prefeituras que, com as construtoras, foram subindo prédio após prédio em Moemas e Itains da vida para acomodar o novo dinheiro, os novos ricos emergentes do interior paulista, das sojas, das laranjas e do etanol -aliás, quem sabe não seriam eles de Marília?
Deixem e defendam o lindo e reformado aeroporto de Congonhas onde ele está! Reformadíssimo, ele presta serviço a uma variadíssima gama da sociedade. Congonhas tem uma das fichas mais limpas do planeta. Além de ser um monumento tombável pelo ponto de vista "art déco nouveau" (abrasileirado modernista), ele serve como uma espécie de referência prática para quem quer dar um "pulo ali" no Rio, em BH, em Salvador etc.
Esse "pulo ali", num país de dimensões continentais como o Brasil, é um conceito fundamental: a mistura rápida entre os vários Brasis e acessível para qualquer mortal pelo táxi branco (ou ônibus pela 23 de Maio). É justamente sua localização, assim como a do Santos Dumont, no Rio, que ainda faz do Brasil um país, digamos, "moderno". Porque do resto, das vaias públicas, das CPIs, das vacas do Renan, do mensalão, do cuecão, dos issos e aquilos, desse Brasil eu já desisti. Além do mais, qual a alternativa? Cumbica? Como assim? Entalar num táxi por duas horas (com sorte durante o rush) para voar 35 minutos?
Aqui onde moro [em Nova York], eu tenho o La Guardia e não teria só uma marginal (já parada, saturada como está). Daqui eu tenho várias opções -não preciso falar de uma por uma, importa que, em 20 minutos, no máximo, estou nisso que chamamos de "domestic airport", o La Guardia.
Quero que vocês se imaginem enfrentando a marginal por horas, depois a Dutra ou a Ayrton Senna e mais o congestionado aeroporto de Cumbica para fazer um vôo de 35 minutos.
Simplesmente é detonar o lindo conceito de ponte aérea e denegrir o pouco que resta de uma infra-estrutura por causa da imprudência de uma gananciosa e politicamente incorreta companhia aérea que agora começa a arcar com sua própria tragédia.
Tomem cuidado sempre que um piloto estender as mãos na beira de um tapete vermelho. Como me disse um comandante, "lugar de piloto antes da decolagem é na cabine, checando os instrumentos até o último instante".
É para perguntar a uns e outros e ao governo em geral até que ponto se sustentarão em mentiras ou artifícios para explicar ou tentar justificar tragédias como essas. Artifícios são como pílulas, como Viagras. Alguma hora o efeito passa -e aí TUDO cai.

GERALD THOMAS é autor e diretor de teatro.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


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