São Paulo, segunda-feira, 23 de julho de 2007

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O médico desafiando a natureza

RAUL CUTAIT


Com tantas novas linhas de pesquisa, cabe perguntar: até onde deve ir o homem em seu afã de dominar e direcionar a natureza?


EVOLUÇÃO É a palavra-chave da natureza. Explica as intensas mudanças no cenário do universo, desde que ocorreu o Big Bang há cerca de 13,7 bilhões de anos.
Na seqüência das explosões da grande massa, formou-se a Terra, onde uma série de fenômenos termodinâmicos propiciou o aparecimento da vida. Na seqüência dos fenômenos biológicos, incontáveis alterações genéticas levaram ao desenvolvimento de milhares de espécies animais e vegetais, até que o imponderável fez com que na escala filogenética surgisse o Homo sapiens, com um tremendo diferencial sobre todos os outros seres vivos: inteligência. Graças a essa característica, a espécie humana deixou de ser só parte do sistema evolutivo e se tornou o grande agente modificador da história de nosso planeta.
Com o correr dos milênios, os homens se multiplicaram e, por meio de seus conhecimentos e ações, criaram mecanismos de convívio social baseados em diversos fatores, entre os quais as aptidões pessoais.
Quanto à saúde, os primeiros a com ela se envolver foram os sacerdotes e curandeiros, que reforçavam sua posição religiosa nas sociedades antigas exercendo o poder sobre a vida.
A grande mudança ocorreu com Hipócrates, no século 5º a.C., que propôs que a medicina deveria ser entendida como ciência, e não mais como algo dependente dos deuses. O mesmo Hipócrates definiu o médico como um indivíduo cuja missão na vida é o bem de seus pacientes, e que deve atuar com princípios que são perpetuados pelo juramento hipocrático, até hoje repetido por todos nós ao término do curso de medicina.
Com o acelerado desenvolvimento da ciência, em especial nas últimas décadas, houve uma melhor compreensão tanto das doenças quanto da saúde. Novas tecnologias têm permitido definir diagnósticos e realizar tratamentos impensáveis até um passado recente.
Contudo, a ciência, à medida que traz soluções, gera também novos desafios. Entre os mais atuais temos a clonagem, o emprego terapêutico de células-tronco, a formação de órgãos a partir de estruturas microscópicas funcionais, a manipulação genética para controlar doenças, o controle da dor e da depressão -esta, uma doença de nossos tempos.
Com tantas novas linhas de pesquisa envolvendo centenas de milhares de pessoas, cabe a seguinte pergunta: até onde deve ir o homem em seu afã de dominar e direcionar a natureza?
Do ponto de vista da ciência, a resposta parece simples: não há limites, pois ela deve permitir a criação e a incorporação de novos conhecimentos, que permitam não só melhor compreender a vida e seus mecanismos mas também empregá-los em prol da sobrevivência e qualidade de vida.
Entretanto, existem alguns fatores controladores e reguladores para o emprego dos conhecimentos adquiridos. Assim, embora seja tecnicamente possível promover abortamento seguro, realizar reprodução assistida com escolha de sexo do feto e preservar a vida em UTI de pacientes muitas vezes terminais, pode-se questionar a correção dessas opções.
Em outras palavras, conseguir fazer não quer dizer que se deva fazer.
Portanto, cabe ao médico e aos pesquisadores desafiar constantemente a natureza, procurando desvendar seus segredos para utilizá-los em benefício de seus semelhantes e, ao mesmo tempo, reconhecer que suas ações precisam ser norteadas por princípios éticos e morais, respeitando a diversidade dos aspectos culturais dos povos e subordinando-as à sua própria consciência, com bom senso, discernimento e humildade.
Finalizo esta reflexão focando o desafio ético que faz parte do dia-a-dia do médico, não ligado à ciência, mas sim às circunstâncias do atendimento médico, que limitam a boa prática médica em decorrência da indisponibilidade de recursos tecnológicos, do cerceamento para exames e tratamentos por parte de fontes pagadoras públicas e privadas, agravados pela formação inadequada. O "fazer o melhor que dá" não basta! Mas isso é assunto para um próximo artigo.

RAUL CUTAIT , 57, cirurgião gastrenterologista, é professor associado do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da USP e presidente do Instituto para o Desenvolvimento da Saúde. Foi secretário da Saúde do município de São Paulo (gestão Paulo Maluf).

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