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ROBERTO MANGABEIRA UNGER
Virada no mundo?
O colapso dos entendimentos
em Cancún sobre comércio internacional suscitou reações opostas.
Para alguns representaria vitória no
enfrentamento dos interesses que
vêm dominando a construção da ordem global. Para outros seria essa
uma vitória de Pirro: os países ricos se
voltariam de vez para as negociações
bilaterais, onde seu poder de barganha continuaria a ser avassalador.
Ambas as interpretações são equivocadas. O significado do que aconteceu
em Cancún será determinado pelo
que ocorrer em seguida. Poucas iniciativas no mundo contêm potencial
transformador maior do que a reunião dos países continentais em desenvolvimento. Se não se fortalecerem, porém, as aproximações estratégicas ali esboçadas, se não se aprofundar o conteúdo das reivindicações e se
essas reivindicações não encontrarem
energia e norte em modelos alternativos de desenvolvimento, o que pareceu avanço acabará em retrocesso. Os
interesses predominantes no mundo,
atuando sob a sombra dos Estados
Unidos, continuarão a deitar e rolar. O
que nos impede de evitar esse desfecho?
Em primeiro lugar, falta projeto. O
foco em temas pontuais, como o combate contra os subsídios agrícolas, é,
ao mesmo tempo, inevitável e insuficiente: teses como essa não bastam
nem para unir os potenciais aliados
(dividem-nos também) nem para
mudar a ordem mundial. Três princípios devem orientar a reconstrução
dessa ordem. Primeiro, rejeitar, como
objetivo do sistema econômico internacional, a maximização do livre comércio. E substituí-la pela busca de regras que permitam reconciliar trajetórias divergentes de desenvolvimento
nacional sem levá-las ao isolamento
recíproco. Segundo, evitar que o compromisso com uma economia global
aberta funcione como licença para
impor determinado tipo de organização econômica e para proibir as parcerias entre governos e produtores
que permitiram aos atuais países ricos
enriquecer. Terceiro, fazer com que
trabalho e capital ganhem juntos, em
pequenos passos, o direito de atravessar fronteiras nacionais em vez de dar
alforria ao capital, mas aprisionar o
trabalho dentro do Estado-nação.
Projeto marcado por essas três diretrizes só pode prosperar se executado
paralelamente a entendimentos entre
os grandes países periféricos, a União
Européia e os internacionalistas dentro dos Estados Unidos para conter e
transformar a hegemonia americana.
Em segundo lugar, falta base. Proposta global dessa natureza tem de
apoiar-se em projetos nacionais fortes
e claros. O regime global só mudará de
fato quando alguns países grandes, ricos ou pobres, quiserem transformar-se numa direção que bater contra limites que ele impõe. Se ousadia externa não tiver essa origem, corre o risco
de servir de compensação, como serve
no Brasil hoje, para imobilismo interno.
Em terceiro lugar, falta agente.
Agentes seriam as forças políticas e as
pessoas que procurassem estreitar os
vínculos entre os esforços para transformar sociedades específicas e as tentativas de reorientar a globalização.
Quem sabe trabalhar essa relação entre mudança dentro e mudança fora
não pode trabalhá-la. E quem pode
não sabe -ou não quer.
Nenhum país hoje conta com maior
margem de manobra do que o Brasil
para suprir essas três faltas. O que
mais nos prejudica é uma quarta falta,
de algo impalpável e insubstituível:
uma antevisão de nossa própria grandeza.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nessa coluna.
www.law.harvard.edu/unger
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