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São Paulo, terça-feira, 23 de setembro de 2003

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Virada no mundo?

O colapso dos entendimentos em Cancún sobre comércio internacional suscitou reações opostas. Para alguns representaria vitória no enfrentamento dos interesses que vêm dominando a construção da ordem global. Para outros seria essa uma vitória de Pirro: os países ricos se voltariam de vez para as negociações bilaterais, onde seu poder de barganha continuaria a ser avassalador.
Ambas as interpretações são equivocadas. O significado do que aconteceu em Cancún será determinado pelo que ocorrer em seguida. Poucas iniciativas no mundo contêm potencial transformador maior do que a reunião dos países continentais em desenvolvimento. Se não se fortalecerem, porém, as aproximações estratégicas ali esboçadas, se não se aprofundar o conteúdo das reivindicações e se essas reivindicações não encontrarem energia e norte em modelos alternativos de desenvolvimento, o que pareceu avanço acabará em retrocesso. Os interesses predominantes no mundo, atuando sob a sombra dos Estados Unidos, continuarão a deitar e rolar. O que nos impede de evitar esse desfecho?
Em primeiro lugar, falta projeto. O foco em temas pontuais, como o combate contra os subsídios agrícolas, é, ao mesmo tempo, inevitável e insuficiente: teses como essa não bastam nem para unir os potenciais aliados (dividem-nos também) nem para mudar a ordem mundial. Três princípios devem orientar a reconstrução dessa ordem. Primeiro, rejeitar, como objetivo do sistema econômico internacional, a maximização do livre comércio. E substituí-la pela busca de regras que permitam reconciliar trajetórias divergentes de desenvolvimento nacional sem levá-las ao isolamento recíproco. Segundo, evitar que o compromisso com uma economia global aberta funcione como licença para impor determinado tipo de organização econômica e para proibir as parcerias entre governos e produtores que permitiram aos atuais países ricos enriquecer. Terceiro, fazer com que trabalho e capital ganhem juntos, em pequenos passos, o direito de atravessar fronteiras nacionais em vez de dar alforria ao capital, mas aprisionar o trabalho dentro do Estado-nação. Projeto marcado por essas três diretrizes só pode prosperar se executado paralelamente a entendimentos entre os grandes países periféricos, a União Européia e os internacionalistas dentro dos Estados Unidos para conter e transformar a hegemonia americana.
Em segundo lugar, falta base. Proposta global dessa natureza tem de apoiar-se em projetos nacionais fortes e claros. O regime global só mudará de fato quando alguns países grandes, ricos ou pobres, quiserem transformar-se numa direção que bater contra limites que ele impõe. Se ousadia externa não tiver essa origem, corre o risco de servir de compensação, como serve no Brasil hoje, para imobilismo interno.
Em terceiro lugar, falta agente. Agentes seriam as forças políticas e as pessoas que procurassem estreitar os vínculos entre os esforços para transformar sociedades específicas e as tentativas de reorientar a globalização. Quem sabe trabalhar essa relação entre mudança dentro e mudança fora não pode trabalhá-la. E quem pode não sabe -ou não quer.
Nenhum país hoje conta com maior margem de manobra do que o Brasil para suprir essas três faltas. O que mais nos prejudica é uma quarta falta, de algo impalpável e insubstituível: uma antevisão de nossa própria grandeza.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nessa coluna.

www.law.harvard.edu/unger


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