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São Paulo, terça-feira, 23 de setembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

De Allende a Lula

CESAR MAIA

A história se repete, como farsa ou tragédia, afirmam sociólogos, clássicos e contemporâneos. Afinal, olhar de hoje para trás, fora do contexto, de nada ajuda. Mas nem por isso processos de ontem deixam de servir de referência para os de hoje, seja pela postura dos líderes, seja pela cegueira em relação aos desdobramentos ou, e principalmente, pela falta de visão estratégica.
O fato é que, no início dos anos 70, na América do Sul, uma onda de governos nacionalistas, ou de esquerda, foi se impondo: Velasco Alvarado, no Peru; Juan José Torres, na Bolívia; Salvador Allende, no Chile; a volta de Perón e sua eleição na Argentina, Romulo Betancourt, na Venezuela e, de certa forma, Pacheco Areco, no Uruguai.
Nesse contexto, o Brasil era a exceção, com um regime militar de direita. Mas nem por isso a onda de nacionalismo deixou de chegar aqui, por meio do governo Geisel, que retomou símbolos getulistas e que, provavelmente, foi o ciclo com a maior proporção de estatizações da história brasileira.


O que vemos hoje na América do Sul, cada vez mais, é uma politização da "herança" recebida


Gabriel Tarde, pai da microssociologia no último quarto do século 19 -curiosamente, a cada dia mais atual-, explicava os sistemas sociais pela dinâmica das interações microssociais e pelo efeito contaminador até a construção de correntes de opinião. Esses fluxos são fenômenos que as pesquisas e análises atentas podem ou não identificar -então podem agir sobre seus desdobramentos ou ser atropeladas por eles. Foi o que ocorreu nos anos 70, de Videla a Bordaberry, de Banzer a Morales Bermudez e, claro, a Allende. Será que essa contra-onda era inevitável? Será que a onda anterior facilitou as suas condições?
Estamos agora completando 30 anos dos golpes sangrentos no Chile e na Argentina, da desestabilização e substituição do autoritarismo nacionalista na Bolívia e no Peru. Num movimento estranhamente cíclico, uma onda com algum grau de parentesco à daquele período envolve outra vez a América do Sul. Chávez na Venezuela, Gutierrez no Equador, Lula no Brasil, Kirchner na Argentina e, inevitavelmente, Tabaré Vasquez no Uruguai, dentro de alguns meses mais. É possível que aquele movimento tenha começado no início dos anos 70, como resposta à crise internacional que vai da desvinculação do dólar/ouro à crise financeira e depois petrolífera internacional.
Há alguma analogia com o ciclo atual, que desde 1997 vem nos acompanhando -as crises asiática, russa etc.- e que fez desmoronar a economia argentina, a venezuelana e encilhou a brasileira com os naturais multiplicadores continentais. Era natural que um impacto geral terminasse produzindo um quadro favorável à simples negativa do que se vinha fazendo e a uma carga retórica forte, que explica tudo pela observação do óbvio: a recessão generalizada no subcontinente.
O Chile, pela memória da violência do golpe e de suas consequências, talvez tenha aprendido melhor a lição e aplica cargas crescentes de racionalidade sobre a natural tendência a "emocionalizar" as respostas, deixando-as prudentemente no terreno simbólico. Mas essa não é a tendência geral.
O que vemos hoje na América do Sul, cada vez mais, é uma politização da "herança" recebida, uma demonização do sistema internacional e uma enorme carga retórica que transforma o inevitável e exaustivo ato de governar em teatralização da gestão. Nem o personagem incensado mudou: Fidel Castro, referência dos anos 60 e 70 para a esquerda. Quem não se lembra da longuíssima viagem do líder cubano ao Chile de Allende, quando deixou a impressão de que não pretendia mais sair de lá? E a sua atual intimidade com Chávez, ou a festejada volta aos cenários dos fóruns, sem esquecer a dubiedade de Lula a seu respeito.
É fato que, no contexto atual, as soluções autoritárias já não se impõem mais. Nem os truques legais que levaram Chávez a estender seu poder e permanência, questionados em sua legitimidade, impulsionam alternativas fora dessa mesma base legal. Mas isso não impede -ao contrário, reforça- a necessidade de avaliar com muito cuidado o quadro sul-americano atual, para que os desdobramentos, nos limites certamente democráticos, não venham a ampliar a dimensão da crise e a sacrificar ainda mais a população. Ou então, o que seria tão grave ou pior, que não abra o flanco para um ciclo tão nosso conhecido de populismos de direita.
Lembro-me de que, nas eleições de 2002, quando coordenava pesquisas nacionais, recebi, entre outras, uma alta autoridade norte-americana que queria conhecer os resultados delas. Afirmei que Lula já estava eleito e perguntei se isso não assustava os EUA pelos efeitos na economia. A resposta foi rápida: "Certamente não. A economia hoje impõe limites e restringe o voluntarismo. O que assusta -afirmou- são as repercussões, as sinalizações e a retórica em matéria de política externa, pois aqui há campo para progredirem".
Hoje, o que vemos dá sentido ao que ouvi. A ingênua disposição de protagonismo externo do atual governo brasileiro, o simplismo com que trata da convergência dos mercados sul-americanos e a retórica presidencial que se excede em bravatas terceiro-mundistas podem ser um sinal de que nada aprenderam. Menos pela repetição automática da história e mais pela farsa ou tragédia que pode conter.
Os riscos estão aí, para quem tiver olhos de ver e ouvidos de ouvir.

Cesar Maia, 58, economista, é prefeito, pelo PFL, do Rio de Janeiro. Foi prefeito da mesma cidade de 1993 a 1996.


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