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São Paulo, terça-feira, 23 de setembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Defender o idioma, como a floresta

ALDO REBELO

Imagino se os jovens leitores da Folha conhecem o episódio, de 1937, em que o grande advogado Sobral Pinto, designado para defender o preso político Harry Berger, achou que seu cliente estava sendo tão maltratado nas masmorras do Estado Novo que devia ser amparado pela Lei de Proteção dos Animais. Minha reflexão veio a partir do artigo "A lei do rato", assinado por Fernando Rodrigues na edição de 1º/9/03 (Opinião, pág. A2). O articulista critica meu projeto de defesa da língua portuguesa, já chamado de Lei Aldo Rebelo.
A conexão entre os dois episódios se verá adiante, mas convém deixar patente que quem está debaixo de vara é o idioma.
Legislar acerca da língua não é impróprio nem novo. O Brasil faz isso desde 1931. Está em vigor uma antiga e democrática política linguística, que nos diz como escrever, acentuar e pluralizar palavras, como usar o hífen, empregar as maiúsculas e o apóstrofo. Não escrevemos "extranjeiro", com x e j, porque assim o determina o "Formulário Ortográfico", de 1943, que estabeleceu as regras para a preparação do "Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa" e, neste, adota-se a grafia estrangeiro. É lei. Os desordeiros podem não gostar, mas temos normas minuciosas até para os ditongos.


Argumentam que idioma é questão de mercado, e a lei da oferta e da procura é que deveria reger o vocabulário


Se é vedada a ortografia pessoal, não há o que estranhar na iniciativa de impedir a descaracterização ostensiva que corrói a língua portuguesa à vista de todos. O apoio que recebi indica que largas parcelas do povo brasileiro estão irritadas com o vendaval de palavras estrangeiras a desbancar o vernáculo dos letreiros de ruas, dos cartazes de lojas, das instruções de eletrodomésticos. Ou seja, da comunicação direta do dia-a-dia. Conheço gente que viu a inscrição "push" na saída do aeroporto, puxou e bateu com a cara na porta. Que "modernidade" nos conduz a escrever "push" em vez de empurre?
Tentam nos convencer de que o mundo já não tem fronteiras, mas que se diga isso a quem luta inutilmente por um visto de entrada em determinados países. Argumentam que idioma não é questão de Estado, e sim de mercado, e a lei da oferta e da procura é que deveria reger o vocabulário. A patranha ilude quem acredita na geração espontânea do mercado, que é, em verdade, manejado pelos monopólios. O linguista americano Steven Fischer já nos advertiu: "O lema hoje é "aprenda inglês e prospere, ou ignore e padeça'". Quem sabe esconde-se nesse comercial o desejo secreto de nos cobrarem royalties por palavra importada, como já os pagamos por molho de sanduíche.
O uso de royalty, anglicismo sem similar vernáculo, serve aqui para desarmar os que confundem defesa do idioma com blindagem de dicionário. É um truísmo repetir que incentivamos a atualização da língua, mas segundo nosso breviário. Temos regras para aportuguesar as palavras incorporadas ao acervo nacional, como fizemos em centenas de casos, entre eles truísmo, do inglês "truism". Se escrevo royalty sem sinal de bastardo, seja entre aspas ou em itálico, é porque a palavra figura, com essa grafia espúria, no nosso vocabulário ortográfico oficial. É bem-vinda, mas tem de se adaptar para entrar.
Há muitos casos extravagantes, como best-seller, "breakfast", "browser", e-mail, "file", "girl", "meeting" etc. Até nosso alfabeto de 23 letras (não temos k, w nem y) é desdenhado.
Um dos objetivos do meu projeto de lei, negligenciado pelas diatribes urdidas contra ele, é a revisão do vocabulário ortográfico para adaptação, ao gênio do idioma, dos monstrengos adventícios que lá foram enfiados. Circulam como se o Brasil fosse terra de ninguém, na qual os estrangeiros, a começar das palavras, podem invocar o arrogante instituto da exterritorialidade, segundo o qual têm o direito de serem regidos pelos usos e costumes de seu país mesmo quando fora dele.
A tradição léxica do Brasil, que o projeto busca resgatar, é a vernaculização, não a transcrição. Em épocas de maior altivez, adaptávamos até nomes próprios, e por isso ainda hoje chamamos os reis da França de Luís e não Louis, e o herói mítico da Suíça Wilhelm Tell de Guilherme Tell. Quem acha que é zelo de subdesenvolvido, saiba que os americanos o chamam de William e os franceses, de Guillaume Tell.
Há um excesso de indicações, portanto, de que a defesa da língua portuguesa faz sentido enquanto é oportuna. No ritmo em que está sendo chacinada no Brasil, corremos o risco de ter que copiar o advogado Sobral Pinto e invocar as leis de defesa do ecossistema para protegê-la da devastação. "A Torre de Babel foi uma bênção", disse o linguista francês Claude Hagège, ao enaltecer a variedade de idiomas. Um símbolo nacional, o pau-brasil, extinto nas matas desde 1920, sobrevive em parques e reservas. Também muitas palavras e expressões portuguesas, de belo som e suave escrita, só restam nos dicionários, porque os devastadores usam a motosserra da linguagem para ceifar "jovem" e nos impingir "teen".

Aldo Rebelo, 47, jornalista, deputado federal pelo PC do B-SP, é o líder do governo na Câmara dos Deputados.


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