São Paulo, quarta-feira, 23 de outubro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Ajuste fiscal x festival de fundos

IVES GANDRA MARTINS e CID HERACLITO DE QUEIROZ

O chamado ajuste fiscal, gerador do superávit primário indispensável à estabilização monetária, vem sendo alcançado pela acentuada elevação da carga tributária (34% do PIB). Nas conjunturas difíceis, são efetuados, na despesa orçamentária, alguns cortes, que acabam atingindo setores importantes, como as Forças Armadas. Alega-se que a maior parte das receitas federais é vinculada a determinados fins, restando, em consequência, pequena margem de manobra para o governo.
O Orçamento público, hoje uma das características essenciais do Estado de Direito, surgiu, em verdade, quando os barões ingleses, em 1215, impuseram a Magna Carta ao despótico Rei João Sem Terra, para obrigá-lo a estabelecer uma estimativa das despesas reais toleráveis através da limitação à liberdade de lançar tributos ("No taxation withouth representation").
A partir da notável obra "Le Budget, son Histoire et son Mécanisme", de René Stourm, editada em 1876, todos os tratadistas das finanças públicas têm sustentado que os orçamentos públicos estão sujeitos a alguns princípios fundamentais: legalidade, anualidade, unicidade, universalidade, especificidade e publicidade. Lalumière, da Sorbonne, acrescenta um outro: o da não-afetação das receitas públicas.
O excesso de vinculações das receitas públicas a determinados fins (que podem ser atendidos por dotações no Orçamento) vulnera os princípios orçamentários, gerando os problemas de que se queixa o governo. Algumas dessas vinculações são ditadas pela Constituição, como a dos artigos 167, inciso IV, e 212. No entanto grande parte das vinculações decorre de disposições legais, que podem ser revogadas por simples medida provisória. Merecem destaque as destinadas a constituir os fundos orçamentários, verdadeiros orçamentos paralelos, que vulneram os princípios da não-afetação, universalidade e unicidade orçamentária.
A leitura dos orçamentos públicos é, por certo, tarefa indigesta. Neste exercício, o Orçamento (lei nš 10.407, de 11/1/02) ocupa 2.269 páginas do "Diário Oficial", mas quem resolver folheá-lo encontrará alguns dados surpreendentes, como, por exemplo, um festival de 47 fundos orçamentários, para os mais variados fins. A maioria não se justifica, refletindo, por certo, as "estruturas de poder", que se encastelam na administração pública.
Os fundos mantêm em funcionamento ministérios, agências, autarquias, secretarias e outros órgãos, assegurando-lhes a chamada "autonomia financeira", um eufemismo para o odioso privilégio de gastar os recursos públicos sem as limitações dos orçamentos anuais. Com saldos ao final de cada exercício transferidos para o exercício seguinte e usados em despesas supérfluas e não-orçadas.


O excesso de vinculações das receitas públicas a determinados fins vulnera os princípios orçamentários


Além dos fundos constitucionais de financiamento do Norte, Nordeste e Centro-Oeste (R$ 2,7 bilhões), outros se justificam pela própria natureza: regime geral da Previdência Social (R$ 85 bilhões), amparo ao trabalhador (R$ 11 bilhões), compensação de variações salariais (R$ 1,1 bilhão) e os destinados a despesas militares: aeronáutico (R$ 870 milhões), Exército (R$ 429 milhões), naval (R$ 416 milhões) e serviço militar (R$ 5 milhões).
Todavia, a outros 37 fundos, o Orçamento de 2002 consigna dotações num total de R$ 44,4 bilhões. A cada exercício novas verbas são consignadas.
Esses fundos sustentam as estruturas de poder, o que, aliás, é confirmado pela comparação entre uns e outros e pela ilogicidade entre os fins da afetação e os valores afetados (em milhões de reais):
Aeroviário (70,6), antidrogas (9,3), assistência social (4.600), atividades de fiscalização da Receita Federal (3.959), atividade-fim da Polícia Federal (212,9), criança e adolescente (4,1), cultura (97,9), defesa dos direitos difusos (8,3), defesa da economia cafeeira (895,4), desenvolvimento da Amazônia (440) e do Nordeste (660), desenvolvimento científico e tecnológico (760,4), desenvolvimento da Educação (3.217), editoração e publicação do Senado (6,1), ensino profissional marítimo (39,1), especial do Senado (0,5), financiamento ao estudante superior (624), garantia à exportação (408,1), garantia para promoção da competitividade (70,2), Hospital das Forças Armadas (68,3), Imprensa Nacional (108,7), informática do Senado (0,9), marinha mercante (905,2), meio ambiente (44,4), Ministério da Defesa (8,5), nacional de desenvolvimento (561), nacional da Saúde (24.230), penitenciário (208,5), rotativo da Câmara dos Deputados (10,2), segurança e educação do trânsito (82,8), segurança pública (338,6), seguro rural (9,2), serviços de telecomunicações (1.161), tecnológico das telecomunicações (255,2), terras e reforma agrária (332,7), treinamento e desenvolvimento (13,5) e turismo (11,3).
A extinção desses fundos constituiria medida saneadora, sobretudo na atual conjuntura, dada a necessidade de elevação do superávit primário, para possibilitar a redução de nossa exagerada dívida interna. O governo do presidente Fernando Henrique, a quem tanto deve o país, como a excelente Lei de Responsabilidade Fiscal, ainda pode extinguir todos esses fundos e restaurar a universalidade e a unicidade do Orçamento da União.


Ives Gandra da Silva Martins, 67, advogado tributarista, é professor emérito das universidades Mackenzie e Paulista e presidente do Conselho Jurídico da Fecomércio-SP. Cid Heraclito de Queiroz, 68, é consultor jurídico da presidência da Confederação Nacional do Comércio. Foi procurador-geral da Fazenda Nacional (1979-91).




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