São Paulo, quarta-feira, 23 de outubro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O Brasil em chamas

LUIZA NAGIB ELUF

Nosso país está pegando fogo. Literalmente. Não em relação às campanhas eleitorais e às acusações entre candidatos de parte a parte, mas em razão dos incêndios, que estão destruindo a pouca vegetação que nos sobrou da devastação.
Segundo informação trazida pela revista "Veja" de 16 de outubro último, neste ano atingimos mais um recorde de queimadas de áreas verdes. Até o início de outubro de 2002, os focos de incêndio já haviam superado em 30% o total registrado no ano passado. E é muito fácil constatar a veracidade da estatística. Basta viajar um pouco por qualquer estrada e será difícil respirar. A fumaça é insuportável. A terra queima incessantemente. Quando não queima é porque já queimou, o que se percebe pela cor preta do solo e a supressão da vegetação.
Há brasileiros que não podem ver um arbusto que já pensam em atear fogo. A conduta é tão estúpida que não parece ter explicação lógica. Talvez resulte de algum trauma coletivo, ou de uma patologia social, uma herança cultural incontrolável, uma guerra eterna contra a árvore. Seja o que for, levará à eliminação completa das áreas verdes em pouco tempo. As consequências serão desastrosas, como já podemos perceber: calor fortíssimo, problemas de abastecimento energético, diminuição do volume dos rios, desaparecimento de nascentes de água, desertificação do solo, poluição e secura do ar, extinção de animais, doenças. Isso tudo além da paisagem desoladora, deprimente, árida, feia; muito feia. E pensar que o Brasil já foi um país lindo...
Ainda segundo dados publicados pela "Veja", em 2002 (ano que não acabou) foram registrados 221 mil focos de incêndio, ou um foco novo a cada dois minutos. Foram destruídos 57 mil hectares de floresta, sendo que o maior incêndio ocorreu na Chapada dos Veadeiros, que perdeu 3% de sua área total.
Esses incêndios, em sua esmagadora maioria, são propositais, criminosos. Foram deliberadamente provocados para atender a interesses pessoais completamente contrários às necessidades da coletividade, do meio ambiente, da saúde pública, do turismo, da preservação das espécies animais.
Aproveitando-se das condições climáticas do inverno e do outono, época em que chove pouco, e da completa negligência e até conivência das autoridades competentes, esses criminosos extravasam toda a sua sanha destruidora queimando áreas verdes para se apossar das terras, para simplesmente "limpá-las" ou para outras finalidades tão abjetas quanto.


O que será feito para a preservação das áreas verdes, a única coisa da qual o Brasil ainda poderá se orgulhar?


Lugares turísticos em razão das belezas naturais estão perdendo suas características atrativas com o desaparecimento da cobertura vegetal. Não há nenhum recanto do Brasil que possamos considerar preservado da devastação.
Diante desse quadro, por incrível que possa parecer, o presidente da República, os governadores dos Estados, os candidatos à Presidência e aos governos estaduais pouco ou nada falam sobre o assunto. Parecem não ver que o estado falencial da economia não é o único fantasma que nos assombra.
Os presidenciáveis, em um dos debates que antecederam o primeiro turno das eleições, questionaram-se mutuamente sobre a transposição do rio São Francisco, como se a seca do Nordeste fosse um fato isolado. A seca vai arruinar o país todo, em breve. E não haverá rio São Francisco para ser transposto, porque ele secará em decorrência da devastação das áreas verdes em sua nascente (o Lula foi o único a mencionar esse fato).
A pergunta fundamental para os candidatos é: O que será feito para a preservação das áreas verdes, a única coisa da qual o Brasil ainda poderá se orgulhar um dia? O fim da vegetação é também o fim das águas, da produção agrícola e pecuária, do turismo, da saúde; da qualidade de vida; é a miséria mais absoluta. Mesmo assim, a devastação só aumenta, e não é por falha na legislação. É falta de vontade.
Durante os últimos anos, o país piorou imensamente nesse aspecto. A questão ambiental, tão vital quanto o controle da inflação, foi sistematicamente esquecida. A pobreza e a ignorância aumentaram demais, todos os morros de todas as cidades, todas as áreas de proteção a mananciais, todos os parques ecológicos estão, de alguma forma, ocupados irregularmente. A cidade de Ouro Preto, considerada pela ONU patrimônio da humanidade, está sendo ameaçada de perder o título em razão da ocupação ilegal e descontrolada de seus morros, o que descaracteriza irrecuperavelmente sua arquitetura.
Não há políticas sérias de preservação vegetal, urbana ou rural. A fiscalização ambiental caiu quase a zero. A falta de zelo pelas próprias entranhas dá mais impressão de desgoverno do que a escalada do dólar. Onde estão os responsáveis por essa nau sem rumo?
Nossos administradores, que tanto gastam com publicidade, precisariam usar a televisão para reeducar a população e contratar agentes para coibir a destruição. Ou somente sobrará o pó.


Luiza Nagib Eluf, 47, é procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo. Foi secretária nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça (governo Fernando Henrique Cardoso).


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