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TENDÊNCIAS/DEBATES
Em Davos: o grupo dos amigos da África
LENA LAVINAS
O presidente do Brasil vai a Davos falar do combate à fome. A hora não poderia ser mais oportuna. Se, no
Brasil, a fome pode ser equacionada
com redistribuição de renda e aumento
da eficiência do gasto público -no horizonte de um mandato presidencial-,
na África, a insegurança alimentar é legado de um acúmulo de déficits agudos
do lado da oferta, da demanda e da cidadania, um legado de exclusão, cuja solução requer uma nova ordem mundial.
A seca que, desde o ano passado, assola países como Lesoto, Maláui, Zâmbia,
Zimbábue, Moçambique, Angola e Suazilândia ameaça a vida de mais de 15 milhões de pessoas. Se a comunidade internacional não canalizar logo recursos
da ordem de US$ 500 milhões para implementar o Programa Mundial de Alimentação da ONU -um plano emergencial que só pretende manter vivos
aqueles que têm conseguido sobreviver
à epidemia da Aids, à guerra, aos massacres interétnicos, aos regimes autoritários e aos efeitos da globalização-,
imagens de uma humanidade perdida
se reproduzirão mais uma vez via internet, alcançando nossas conexões sem
verdadeiramente tocar nossos corações.
Cada vez mais, o que se passa do outro
lado do Atlântico nos parece inalcançável, insolúvel e, portanto, insuperável.
Como no nosso nordeste, onde miséria e fome eram consequências da estiagem e da ação daqueles que a manipulavam em causa própria, controlando a
terra, a água e o mercado, também na
África subsaariana, somam-se à irregularidade das chuvas as consequências
de iniciativas desastrosas. Seja a reforma agrária implementada, em 2000, no
Zimbábue, que, ao desestruturar a produção agrícola, comprometeu a oferta
de alimentos em toda a região, sejam os
programas levados ao Maláui que promoveram transferências de renda aos
mais pobres, mas suprimiram subsídios
à produção de milho, alimento básico
da população, em nome do ideário macroeconômico liberal. É o assistencialismo jogando contra a emancipação.
A fome na África subsaariana é resultado do baixíssimo nível de produtividade da sua agricultura, hoje sem condições de competir no mercado mundial. As terras públicas têm sido privatizadas, e a renda fundiária compromete
os excedentes. O crédito rural, também
privatizado, levou a um aumento proibitivo dos encargos financeiros e à redução da sua oferta, provocando, como
ocorreu em Zâmbia, mais fome e o empobrecimento de milhares de pequenos
produtores. Com isso, os níveis de segurança alimentar da população, já deficientes, deterioram-se ainda mais sob o
efeito periódico da seca.
O Brasil vem liderando o debate Norte-Sul no que tange à redução das barreiras protecionistas em prol de um comércio global mais justo. A questão dos
subsídios faz parte dessa agenda, a
agenda do mundo em desenvolvimento. Mas há outras tantas causas urgentes
no âmbito de uma nova relação Sul-Sul.
No último relatório da Unctad (Conferência da ONU sobre Comércio e Desenvolvimento) sobre os países mais
pobres do mundo (2002), o embaixador
Rubens Ricupero salientou a necessidade imperiosa da ampliação da cooperação entre os países em desenvolvimento. Isso não em substituição à cooperação Norte-Sul, mas como complemento
indispensável à luta contra a pobreza
-em razão das inúmeras complementaridades econômicas existentes entre
os países em desenvolvimento.
O consenso na luta contra a pobreza reflete a consciência global
de que não se pode avançar sozinho
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Cabe ao Brasil pisar no acelerador da
cooperação Sul-Sul. Tem como fazê-lo,
pois ganhou legitimidade com muitos
países africanos pela ousadia, pela competência e pelo êxito na busca de soluções alternativas para seus problemas.
Isso seja na quebra das patentes para a
produção de remédios, garantindo sua
distribuição gratuita, seja por ter concebido programas sociais inovadores, como o Bolsa-Escola -que deverá ser
adotado pelo governo de Moçambique-, seja ainda por difundir práticas
democráticas de controle do bem público e de participação popular (Orçamento Participativo). Como reconhece o
Banco Mundial, o impacto da ajuda internacional só é positivo quando encontra "boas políticas" locais.
Num seminário internacional na Cidade do Cabo, em 2001, uma jovem africana descrevia emocionada como, no
Brasil, a alocação dos recursos das prefeituras era decidida e controlada pela
população, organizada em reuniões
abertas. Tentou-se explicar que a fração
do orçamento em debate era ainda reduzida e que tal prática não se estendia a
todos os municípios do país, longe disso. Tal correção, entretanto, apenas colocou em descrédito aquele que buscava
fazer um esclarecimento pontual. O
Brasil aparecia maior que seus próprios
feitos e desafios.
Se indicadores fossem necessários para lembrar o que há a ser feito na África
subsaariana, uma pequena amostra poderia nos refrescar a memória: uma renda per capita média anual de menos de
US$ 300 -em queda nos últimos vinte
anos-; a existência de uma pobreza
absoluta generalizada e ainda em expansão, pois atingia 65% da população
no período entre 1995 e 1999 -contra
56% há 30 anos-; uma expectativa de
vida inferior a 50 anos de idade; 45 milhões de crianças fora da escola; cobertura social para menos de 10% da população. Isso sem falar nos índices elevadíssimos de casos de Aids entre os adultos africanos. Os dados, divulgados por
órgãos internacionais (Unesco, OIT,
Unctad etc.), explicam a razão pela qual,
desde a conferência de Copenhague, em
1995, a luta contra a pobreza se tornou
uma prioridade máxima no seio da comunidade internacional.
O consenso na luta contra a pobreza
reflete a consciência global de que não
se pode avançar sozinho. Ele não logrou
ainda, entretanto, recolocar na pauta
das relações internacionais a reformulação dos mecanismos da ajuda internacional e a ampliação, em bases justas e
decentes, do financiamento ao desenvolvimento.
Por isso mesmo o presidente do Brasil
vai a Davos. Vai manifestar seu -nosso- compromisso definitivo com o
fim da fome em todo o mundo.
Lena Lavinas, 49, economista, trabalha no departamento de política de seguridade social da
Organização Internacional do Trabalho, em Genebra. As opiniões aqui expressas são de responsabilidade exclusiva da autora e não retratam a
visão da instituição.
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