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São Paulo, sexta-feira, 24 de janeiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Em Davos: o grupo dos amigos da África

LENA LAVINAS

O presidente do Brasil vai a Davos falar do combate à fome. A hora não poderia ser mais oportuna. Se, no Brasil, a fome pode ser equacionada com redistribuição de renda e aumento da eficiência do gasto público -no horizonte de um mandato presidencial-, na África, a insegurança alimentar é legado de um acúmulo de déficits agudos do lado da oferta, da demanda e da cidadania, um legado de exclusão, cuja solução requer uma nova ordem mundial.
A seca que, desde o ano passado, assola países como Lesoto, Maláui, Zâmbia, Zimbábue, Moçambique, Angola e Suazilândia ameaça a vida de mais de 15 milhões de pessoas. Se a comunidade internacional não canalizar logo recursos da ordem de US$ 500 milhões para implementar o Programa Mundial de Alimentação da ONU -um plano emergencial que só pretende manter vivos aqueles que têm conseguido sobreviver à epidemia da Aids, à guerra, aos massacres interétnicos, aos regimes autoritários e aos efeitos da globalização-, imagens de uma humanidade perdida se reproduzirão mais uma vez via internet, alcançando nossas conexões sem verdadeiramente tocar nossos corações. Cada vez mais, o que se passa do outro lado do Atlântico nos parece inalcançável, insolúvel e, portanto, insuperável.
Como no nosso nordeste, onde miséria e fome eram consequências da estiagem e da ação daqueles que a manipulavam em causa própria, controlando a terra, a água e o mercado, também na África subsaariana, somam-se à irregularidade das chuvas as consequências de iniciativas desastrosas. Seja a reforma agrária implementada, em 2000, no Zimbábue, que, ao desestruturar a produção agrícola, comprometeu a oferta de alimentos em toda a região, sejam os programas levados ao Maláui que promoveram transferências de renda aos mais pobres, mas suprimiram subsídios à produção de milho, alimento básico da população, em nome do ideário macroeconômico liberal. É o assistencialismo jogando contra a emancipação.
A fome na África subsaariana é resultado do baixíssimo nível de produtividade da sua agricultura, hoje sem condições de competir no mercado mundial. As terras públicas têm sido privatizadas, e a renda fundiária compromete os excedentes. O crédito rural, também privatizado, levou a um aumento proibitivo dos encargos financeiros e à redução da sua oferta, provocando, como ocorreu em Zâmbia, mais fome e o empobrecimento de milhares de pequenos produtores. Com isso, os níveis de segurança alimentar da população, já deficientes, deterioram-se ainda mais sob o efeito periódico da seca.
O Brasil vem liderando o debate Norte-Sul no que tange à redução das barreiras protecionistas em prol de um comércio global mais justo. A questão dos subsídios faz parte dessa agenda, a agenda do mundo em desenvolvimento. Mas há outras tantas causas urgentes no âmbito de uma nova relação Sul-Sul. No último relatório da Unctad (Conferência da ONU sobre Comércio e Desenvolvimento) sobre os países mais pobres do mundo (2002), o embaixador Rubens Ricupero salientou a necessidade imperiosa da ampliação da cooperação entre os países em desenvolvimento. Isso não em substituição à cooperação Norte-Sul, mas como complemento indispensável à luta contra a pobreza -em razão das inúmeras complementaridades econômicas existentes entre os países em desenvolvimento.


O consenso na luta contra a pobreza reflete a consciência global de que não se pode avançar sozinho


Cabe ao Brasil pisar no acelerador da cooperação Sul-Sul. Tem como fazê-lo, pois ganhou legitimidade com muitos países africanos pela ousadia, pela competência e pelo êxito na busca de soluções alternativas para seus problemas. Isso seja na quebra das patentes para a produção de remédios, garantindo sua distribuição gratuita, seja por ter concebido programas sociais inovadores, como o Bolsa-Escola -que deverá ser adotado pelo governo de Moçambique-, seja ainda por difundir práticas democráticas de controle do bem público e de participação popular (Orçamento Participativo). Como reconhece o Banco Mundial, o impacto da ajuda internacional só é positivo quando encontra "boas políticas" locais.
Num seminário internacional na Cidade do Cabo, em 2001, uma jovem africana descrevia emocionada como, no Brasil, a alocação dos recursos das prefeituras era decidida e controlada pela população, organizada em reuniões abertas. Tentou-se explicar que a fração do orçamento em debate era ainda reduzida e que tal prática não se estendia a todos os municípios do país, longe disso. Tal correção, entretanto, apenas colocou em descrédito aquele que buscava fazer um esclarecimento pontual. O Brasil aparecia maior que seus próprios feitos e desafios.
Se indicadores fossem necessários para lembrar o que há a ser feito na África subsaariana, uma pequena amostra poderia nos refrescar a memória: uma renda per capita média anual de menos de US$ 300 -em queda nos últimos vinte anos-; a existência de uma pobreza absoluta generalizada e ainda em expansão, pois atingia 65% da população no período entre 1995 e 1999 -contra 56% há 30 anos-; uma expectativa de vida inferior a 50 anos de idade; 45 milhões de crianças fora da escola; cobertura social para menos de 10% da população. Isso sem falar nos índices elevadíssimos de casos de Aids entre os adultos africanos. Os dados, divulgados por órgãos internacionais (Unesco, OIT, Unctad etc.), explicam a razão pela qual, desde a conferência de Copenhague, em 1995, a luta contra a pobreza se tornou uma prioridade máxima no seio da comunidade internacional.
O consenso na luta contra a pobreza reflete a consciência global de que não se pode avançar sozinho. Ele não logrou ainda, entretanto, recolocar na pauta das relações internacionais a reformulação dos mecanismos da ajuda internacional e a ampliação, em bases justas e decentes, do financiamento ao desenvolvimento.
Por isso mesmo o presidente do Brasil vai a Davos. Vai manifestar seu -nosso- compromisso definitivo com o fim da fome em todo o mundo.

Lena Lavinas, 49, economista, trabalha no departamento de política de seguridade social da Organização Internacional do Trabalho, em Genebra. As opiniões aqui expressas são de responsabilidade exclusiva da autora e não retratam a visão da instituição.


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