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TENDÊNCIAS/DEBATES
É bom morar em São Paulo?
NÃO
Sobreviver em São Paulo
FERRÉZ
Parece até um título fácil, mas na
realidade não. Bom... é sim, para
quem mora em determinado lugar de
São Paulo. Pode-se dizer que a cidade é
subdividida em duas, e isso é claro, central e periférica, a parte difícil é dizer
quem cerca quem.
Que os moradores da periferia (como
eu, tá ligado?) vão ao centro para prestar
serviço não é nenhuma novidade, mas e
a diversão? E desfrutar a cidade? Aí são
outros quinhentos, ou melhor, são outros 450.
Poderia citar milhões de motivos para
não gostar da cidade, poderia divagar
por mil fitas, mas a cidade é mãe, terra
de arranha-céus, pátria dos desabrigados, lar de Germano Mathias e sempre
será assim. São Paulo continuará iludindo com sua leve manta, e se andarmos à
noite por ela, não veremos somente
boates, bares, casas de relaxamento,
ruas nobres que parecem as de Londres,
comércios luxuosos que nos fazem ir
para Tóquio, lojas que nos levam ao
passado e a pôr um pé no futuro. Mas se
olharmos com detalhe veremos crianças, filhos de seus não tão ilustres moradores, acompanhados da famosa "senhora do chapelão", a fome, em quase
toda esquina.
"Mas passa fome quem quer em São
Paulo", já dizia o sábio professor a sua
turma de alunos escolhidos pelo sistema financeiro de algum colégio tipo o
Salesiano. É quente. Quem não quiser
que venda chiclete, balinha, Bob Esponja, afinal não é igual para todos a entrega
do troféu de cidadão honorário.
Vem maranhense, vem pernambucano, vem baiano, mas daqui direto para o
albergue, ou quem sabe para a periferia.
(São Paulo é a segunda Bahia e o segundo Rio em termos de baianos e cariocas.) Não há vagas, mas há espaço para
todos, desde que cada um esteja no seu
devido lugar, certo manos?
Esse é só um lado da cidade? Pode ser,
sangue bom, mas é o lado que eu conheço, com que convivo, de onde vejo somente as costas do Borba Gato, segurando seu fuzil, deixando claro que estamos sendo vigiados, o lado que me dá a
lágrima, que reparte a dor da perda, o
lado de quem não tem lado, de quem
nunca é retratado, dá até rima, seu carro
tem ar-condicionado, aqui na perifa só
muleque descalço.
Venham todos ver nesse aniversário o
rapa da prefeitura tomar a barraca daquela dona Maria que era empregada e
perdeu o emprego porque o filho saiu
no "Cidade Alerta". Venham festejar
com o vizinho que saiu da cadeia há
dois dias e ainda não sabe como irá fazer para comer e se vestir, vem que tem
vaga para você, aqui é SP.
A terra onde matar periférico causa silêncio e frustração, e matar do outro lado da ponte causa indignação, passeatas, mudança na legislação.
E todos falam pra caramba, montam
tese, mas passa um dia aqui para ver se
sobra orgulho dos textos mentirosos,
dos verbos bem colocados, das frases
bem montadas, que emocionam, que
chocam e que no final são tudo um
monte de mentiras, porque a São Paulo
ao seu redor é de concreto e a nossa é de
lama. A sua é: Moema, Morumbi, Jardim Paulista, Pinheiros, Itaim Bibi e Alto de Pinheiros. A nossa é: Jardim Ângela, Iguatemi, Lajeado, São Rafael, Parelheiros, Marsilac, Cidade Tiradentes,
Capão Redondo.
Palavrão aqui na comunidade é "desemprego", aqui é Sampa também, mas
do marketing estamos além, fora da festa, fora da comemoração.
Na área da barragem, onde vivem índios tupis-guaranis, ninguém está sabendo da festa. Em Campo Limpo, Grajaú e Brasilândia não vi ninguém encher
de rosas nem ninguém restaurar, não
vieram ao menos canalizar o córrego,
no fim do dia não teve show, não teve visita de ninguém do poder público, mas
vi um menino de sete anos na ponte esperando a esperança, só não sei por
quanto tempo. A única coisa que representa o governo por aqui é a polícia, então todos já imaginam como ele é representado.
Tá certo! São Paulo é nossa também,
afinal, cuidamos do dinheiro, lavamos,
vigiamos, passamos, limpamos, digitamos, afogamos mágoas em pequenos
bares, vivemos em pequenos casulos,
comemos o pouco de ração que sobrou
do outro dia e ainda dizemos amém,
Sampa city, você é meu berço, pois não
nascemos com nenhum de verdade.
Construímos e não moramos, fritamos e não comemos, assistimos, mas
não vivemos, passamos vontade, mas
passamos adiante.
O quê? Ah! A parte boa da cidade?
Bom, acho que vou passar essa, vou deixar para alguém que viva nela, pois o
termo aqui para nós é sobrevivência,
mas com certeza deve ter muita coisa
boa nela, Sampa é bem grande, né? E
tem muita diversidade cultural, assim
como social.
Somos somente um reflexo de tudo isso, os catadores de materiais recicláveis,
os balconistas, os motoristas, os flanelinhas, as empregadas domésticas, os
vendedores ambulantes, os vigilantes,
os meninos da Febem, os 118 mil presos
de todo o Estado e mais uma porrada de
gente que te saúda e deseja mais consciência e consideração nesse aniversário, São Paulo.
Ferréz é o nome literário de Reginaldo Ferreira
da Silva, 28, autor de "Capão Pecado" (Labortexto, 2000), romance sobre o cotidiano violento do
bairro do Capão Redondo, na periferia de São
Paulo, onde vive o escritor, e de "Manual Prático
do Ódio" (Objetiva, 2003).
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