São Paulo, sábado, 24 de janeiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

É bom morar em São Paulo?

NÃO

Sobreviver em São Paulo

FERRÉZ

Parece até um título fácil, mas na realidade não. Bom... é sim, para quem mora em determinado lugar de São Paulo. Pode-se dizer que a cidade é subdividida em duas, e isso é claro, central e periférica, a parte difícil é dizer quem cerca quem.
Que os moradores da periferia (como eu, tá ligado?) vão ao centro para prestar serviço não é nenhuma novidade, mas e a diversão? E desfrutar a cidade? Aí são outros quinhentos, ou melhor, são outros 450.
Poderia citar milhões de motivos para não gostar da cidade, poderia divagar por mil fitas, mas a cidade é mãe, terra de arranha-céus, pátria dos desabrigados, lar de Germano Mathias e sempre será assim. São Paulo continuará iludindo com sua leve manta, e se andarmos à noite por ela, não veremos somente boates, bares, casas de relaxamento, ruas nobres que parecem as de Londres, comércios luxuosos que nos fazem ir para Tóquio, lojas que nos levam ao passado e a pôr um pé no futuro. Mas se olharmos com detalhe veremos crianças, filhos de seus não tão ilustres moradores, acompanhados da famosa "senhora do chapelão", a fome, em quase toda esquina.
"Mas passa fome quem quer em São Paulo", já dizia o sábio professor a sua turma de alunos escolhidos pelo sistema financeiro de algum colégio tipo o Salesiano. É quente. Quem não quiser que venda chiclete, balinha, Bob Esponja, afinal não é igual para todos a entrega do troféu de cidadão honorário.
Vem maranhense, vem pernambucano, vem baiano, mas daqui direto para o albergue, ou quem sabe para a periferia. (São Paulo é a segunda Bahia e o segundo Rio em termos de baianos e cariocas.) Não há vagas, mas há espaço para todos, desde que cada um esteja no seu devido lugar, certo manos?
Esse é só um lado da cidade? Pode ser, sangue bom, mas é o lado que eu conheço, com que convivo, de onde vejo somente as costas do Borba Gato, segurando seu fuzil, deixando claro que estamos sendo vigiados, o lado que me dá a lágrima, que reparte a dor da perda, o lado de quem não tem lado, de quem nunca é retratado, dá até rima, seu carro tem ar-condicionado, aqui na perifa só muleque descalço.
Venham todos ver nesse aniversário o rapa da prefeitura tomar a barraca daquela dona Maria que era empregada e perdeu o emprego porque o filho saiu no "Cidade Alerta". Venham festejar com o vizinho que saiu da cadeia há dois dias e ainda não sabe como irá fazer para comer e se vestir, vem que tem vaga para você, aqui é SP.
A terra onde matar periférico causa silêncio e frustração, e matar do outro lado da ponte causa indignação, passeatas, mudança na legislação.
E todos falam pra caramba, montam tese, mas passa um dia aqui para ver se sobra orgulho dos textos mentirosos, dos verbos bem colocados, das frases bem montadas, que emocionam, que chocam e que no final são tudo um monte de mentiras, porque a São Paulo ao seu redor é de concreto e a nossa é de lama. A sua é: Moema, Morumbi, Jardim Paulista, Pinheiros, Itaim Bibi e Alto de Pinheiros. A nossa é: Jardim Ângela, Iguatemi, Lajeado, São Rafael, Parelheiros, Marsilac, Cidade Tiradentes, Capão Redondo.
Palavrão aqui na comunidade é "desemprego", aqui é Sampa também, mas do marketing estamos além, fora da festa, fora da comemoração.
Na área da barragem, onde vivem índios tupis-guaranis, ninguém está sabendo da festa. Em Campo Limpo, Grajaú e Brasilândia não vi ninguém encher de rosas nem ninguém restaurar, não vieram ao menos canalizar o córrego, no fim do dia não teve show, não teve visita de ninguém do poder público, mas vi um menino de sete anos na ponte esperando a esperança, só não sei por quanto tempo. A única coisa que representa o governo por aqui é a polícia, então todos já imaginam como ele é representado.
Tá certo! São Paulo é nossa também, afinal, cuidamos do dinheiro, lavamos, vigiamos, passamos, limpamos, digitamos, afogamos mágoas em pequenos bares, vivemos em pequenos casulos, comemos o pouco de ração que sobrou do outro dia e ainda dizemos amém, Sampa city, você é meu berço, pois não nascemos com nenhum de verdade.
Construímos e não moramos, fritamos e não comemos, assistimos, mas não vivemos, passamos vontade, mas passamos adiante.
O quê? Ah! A parte boa da cidade? Bom, acho que vou passar essa, vou deixar para alguém que viva nela, pois o termo aqui para nós é sobrevivência, mas com certeza deve ter muita coisa boa nela, Sampa é bem grande, né? E tem muita diversidade cultural, assim como social.
Somos somente um reflexo de tudo isso, os catadores de materiais recicláveis, os balconistas, os motoristas, os flanelinhas, as empregadas domésticas, os vendedores ambulantes, os vigilantes, os meninos da Febem, os 118 mil presos de todo o Estado e mais uma porrada de gente que te saúda e deseja mais consciência e consideração nesse aniversário, São Paulo.


Ferréz é o nome literário de Reginaldo Ferreira da Silva, 28, autor de "Capão Pecado" (Labortexto, 2000), romance sobre o cotidiano violento do bairro do Capão Redondo, na periferia de São Paulo, onde vive o escritor, e de "Manual Prático do Ódio" (Objetiva, 2003).


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