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São Paulo, segunda-feira, 24 de fevereiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Cidade de Deus e o pacto pela paz

LUIZ EDUARDO SOARES

A Secretaria Nacional de Segurança Pública foi criada em 1995 e permaneceu irrelevante até junho de 2000, quando foi criado o Fundo Nacional de Segurança. Desde então, tornou-se uma tesouraria, e, por isso, significativa. Mas continuou impotente, apesar da qualidade profissional de seus gestores, porque o contexto permitia muito pouco. A secretaria funcionava como um balcão varejista: recebia projetos isolados dos Estados, examinava sua adequação formal às exigências estipuladas e, burocraticamente, repassava os recursos. Viaturas e armas foram compradas como nunca no Brasil sem que se soubesse a sua real eficácia.
Não havia uma política, isto é, diagnóstico sobre os problemas, identificação de suas matrizes, hierarquização de prioridades, planejamento rigoroso, constituição de mecanismos de avaliação e implantação de dinâmicas regulares de monitoramento. Sem esses ingredientes, não era possível aprender com os erros e construir um sistema institucionalizado de práticas racionais, com alguma chance de aprimoramento progressivo.
O novo quadro político que emerge da vitória do presidente Lula propicia mudanças. Para evitar a mera reatividade fragmentária do varejo, que endossa o velho hábito do improviso voluntarista e inviabiliza qualquer política séria, a Secretaria Nacional de Segurança está solicitando aos Estados que substituam os projetos isolados por planos sistêmicos que se mostrem capazes de promover as inadiáveis reformas das polícias.
Essas reformas necessariamente envolvem as teses defendidas no plano nacional de segurança que o presidente Lula apresentou à sociedade durante a campanha eleitoral: aumento da eficiência das polícias, redução da corrupção policial, valorização dos profissionais de polícia e respeito aos direitos humanos. As reformas se fazem com mudanças na formação e no gerenciamento, com a reorganização institucional e a integração entre as polícias, com a introdução de novas tecnologias e de rigorosos controles internos e externos, com a essencial revalorização da perícia e da ouvidoria, com a qualificação de dados e rotinas de planejamento, além da implantação de processos de avaliação e monitoramento, com transparência e participação social.


Os governos e a sociedade compreenderam que é inadiável a união de todos contra a barbárie, pelo futuro da civilização


Os Estados têm de ser respeitados em sua autonomia para estipular as próprias metas, mas o governo federal tem o direito e o dever de condicionar a concessão de apoio material aos planos estaduais que demonstrem compromisso prático, não retórico, com a promoção dos valores que a sociedade reconhece e a Constituição cultua.
A tese mais original da nova política de segurança propõe a combinação de ações em duas frentes: social e policial. Não basta aumentar a eficiência das polícias, livrá-las da corrupção, torná-las menos brutais e racistas e fazê-las respeitar os direitos humanos, se os jovens sem perspectiva e esperança continuam a ser recrutados pelo tráfico e pelo crime. Por isso, simultaneamente ao esforço sem paralelo na esfera das reformas policiais, é necessário agir sobre as causas imediatas, já que as transformações estruturais exigem longo tempo de maturação. O envolvimento dos jovens não pode ser reduzido a uma equação materialista e contábil, ainda que dinheiro e consumo sejam decisivos.
Estão também em jogo o sentimento e a subjetividade, daí a importância da dimensão cultural: os jovens mais vulneráveis ao recrutamento estão famintos de reconhecimento e valorização. Sua auto-estima está mais degradada do que sua vida cotidiana. São seres socialmente invisíveis. A arma é o passaporte para a visibilidade e o reconhecimento. Precisamos disputar menino a menino com o tráfico e o crime, instituindo fontes alternativas de atração. Nossa arma pode ser a música, a cultura hip hop, a criação cultural, a educação, a experiência esportiva e as práticas que alimentem um indispensável narcisismo construtivo. Emprego e renda não podem faltar, a família e a comunidade são fundamentais.
Se isso é verdade, um bom programa preventivo tem de agir em todos esses níveis. Deve ser intersetorial e sustentável, para mudar cenários, roteiros e personagens nessa trama macabra de nossas tragédias anunciadas. O programa que será implantado na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, tem essas características. Nesse bairro-favela famoso pela violência, os governos municipal, estadual e federal (por meio de vários ministérios), muitas entidades da sociedade civil e lideranças da própria comunidade local estão começando a trabalhar de modo articulado, a partir de um programa comum, voltado para o aprimoramento da qualidade de vida e, em especial, visando oferecer alternativas aos jovens e apoiando suas famílias. Os governos e a sociedade compreenderam que é inadiável o pacto pela paz, a união de todos contra a barbárie, pelo futuro da civilização e da democracia no Brasil.


Luiz Eduardo Soares, 49, antropólogo, é secretário nacional de Segurança Pública. Foi coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro (1999-2000).


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