São Paulo, sábado, 24 de março de 2007

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RUY CASTRO

Gol contra

RIO DE JANEIRO - Quando Pelé fez seu milésimo gol, no Maracanã, em 1969, sua frase após beijar a bola foi: "Pensem nas criancinhas!". No futuro, o que Pelé faria por suas próprias criancinhas seria problema dele. Mas as criancinhas a que ele se referiu naquela noite eram, ou deveriam ser, problema nosso.
Em certos círculos, havia uma forte prevenção contra Pelé. Ele não "se colocava" politicamente, não falava contra a ditadura e era casado com uma branca. Não importava que fosse Pelé -não era bastante. Teria de ser também irado como Muhammad Ali, Miles Davis ou os Panteras Negras. O milésimo gol, diante da selva de microfones, seria a sua chance. Mas, em vez de dar uma banana para o mundo branco ou gritar "Xô!" para os militares, Pelé fez o famoso apelo pelas criancinhas.
Em 1969, não se pregava o assistencialismo impunemente. Era preciso pregar a revolução. Os intelectuais ridicularizaram Pelé. Mas os governos, a quem competia seguir o conselho dele, também não se mexeram. O Brasil insistiu em fazer gol contra.
Isso foi há 38 anos. Se tinham 10 anos de idade em 1969, as crianças a que Pelé se referiu devem ter sido pais ou mães em 1979, por volta dos 20. Por sua vez, essas crianças de 1979 também devem ter sido pais ou mães em 1999 e aí já estamos falando dos netos das crianças em que Pelé nos mandou pensar. Esses netos, hoje perto dos 10 anos, podem ser vistos nas ruas do país, agonizando pela ação do crack e da cola. Ou, armados, rindo da autoridade e nem aí para a vida e a morte, deles ou nossa.
Romário, às portas de seu milésimo gol, é mais realista que o "rei". Por conhecer melhor o Brasil, não está propondo uma cruzada nacional pelas crianças. Limitou-se às que, como sua filha, têm a síndrome de Down. E só pediu amor.


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