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São Paulo, quinta-feira, 24 de abril de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Geografia do sonho

RIO DE JANEIRO - Séculos antes de Sigmund Freud e Allan Kardec, os sonhos tentaram explicar as cavernas onde o ser humano habita, escondido de todos e de si mesmo.
Na cultura ocidental cristã, o documento mais antigo e razoavelmente confiável seria o relato bíblico, povoado de sonhos, como os de Jacó, que lutou com um anjo e por isso se tornou Israel. José decifrou o sonho do faraó e até mesmo o outro José, que, em sonho, foi aconselhado a fugir da matança ordenada por Herodes.
A "Divina Comédia", um dos maiores poemas da humanidade, não deixa de ser um sonho em que Dante visitou o inferno, o purgatório e o paraíso. A mulher de César teve um sonho esquisito e pediu que o marido não fosse ao Foro naqueles idos de março. A mulher de Pilatos também teve um sonho e pediu ao procurador romano que evitasse a condenação do Nazareno.
Citei exemplos notáveis, mas cada um de nós tem uma velha conta a ajustar com os sonhos que nos frequentam desde os primeiros anos de vida. Quando os recém-nascidos choram, sempre se pensa que eles estão famintos ou incomodados com as fraldas molhadas. A hipótese de sonhos terríveis e premonitórios nunca é levada em consideração.
Houve tempo em que não gostava dos sonhos. Uns pelos outros, eram angustiantes, mesmo quando não eram pesadelos. Ultimamente, estou gostando de sonhar, qualquer coisa serve. Descobri tardiamente que eles me transportam no tempo e no espaço, ao passado e ao futuro, vejo paisagens deslumbrantes e absurdas, convivo com pessoas que não mais existem, parentes, amigos e até mesmo desconhecidos, que, no sonho, se tornam conhecidos.
Não dou bola para o significado dos sonhos. Se a vida em si não significa nada, não posso exigir sentido da geografia e da história, que, sem pedir licença, me visitam a cada noite.


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