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São Paulo, quinta-feira, 24 de abril de 2003

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MARCELO COELHO

O pé esquerdo

Acho que este artigo é meio supérfluo. O governo Lula já é seu próprio comentário. Os fatos criticam o discurso, as decisões ironizam quem decide, o presente revoga o passado -e ai de quem for muito petista no governo do PT. Será chamado de radical.
O termo é bastante injusto: radical. Hoje em dia parece xingamento. Mas ninguém precisa ser estigmatizado só porque é contra a tributação dos inativos, a autonomia do Banco Central, as metas do superávit primário, as altas taxas de juros e coisas do tipo. Não é questão de radicalismo, mas, sim, de coerência; de memória; ou de senso do ridículo, quem sabe.
O caso é até um pouco mais simples. Imagino o deputado que prometeu lutar contra a política econômica de Malan, contra o projeto neoliberal, contra essa ou aquela proposta "inaceitável", "imoral", do governo Fernando Henrique. Quem o autoriza a trair os compromissos que assumiu?
Se todo político petista se sentir desobrigado em relação ao que dizia alguns meses atrás, ficará difícil saber a diferença entre moderação e oportunismo; entre o que passa por sensatez e o que é puro estelionato eleitoral.
Já o ministro Palocci Filho, por exemplo, nada tem de radical. Havia registrado em cartório a promessa de reassumir a Prefeitura de Ribeirão Preto, da qual se afastara para cuidar da campanha de Lula. Mas sua sensatez, sua moderação, sua falta de... "radicalismo" fizeram-no mudar de idéia. O que ele tinha escrito não foi para valer. Ei-lo ministro.
Melhor quebrar um compromisso do que um osso do pé. Bem disse o José Simão que este é o país da piada pronta. Temos agora o ministro Palocci Filho com o pé esquerdo engessado, depois de um desses infaustos jogos de futebol organizados pelo presidente da República, ou pela sua equipe de marketing.
Lula piorou da bursite depois de um tombo numa partida; o presidente da Câmara, João Paulo Cunha, quebrou o cotovelo jogando bola. José Dirceu fraturou a mão direita em fevereiro. Quantos acidentes! É coincidência demais.
Talvez os membros do novo governo se sintam mal com a própria moderação. Nas horas de lazer, portanto, estariam entregues à velha fúria ou, no mínimo, aos prazeres da imprudência.
Pode ser também algum tipo de autopunição. Será? Ou então o contrário: vontade de extirpar, de amputar uma metade de si mesmos, para ficar só com a outra, a que funciona. Experimentam no próprio corpo o que gostariam de fazer com seus colegas mais "radicais" do partido. Cobri-los de esparadrapo, imobilizá-los debaixo de uma boa camada de gesso ou de uma pá de cal.
Será que estou indignado demais? Afinal de contas, não é sempre assim? O sujeito se elege dizendo uma coisa e faz outra no governo? Todo mundo sabia, já no tempo do império, que não há nada mais parecido com um conservador que um liberal no poder.
Todo mundo sabia... mas muitos petistas justamente consideravam-se capazes de romper com essa tradição. Espantam-se agora. Não é fácil romper com nada; pensando bem, talvez nem fosse boa idéia. Vão tocando a bola. Por enquanto, ainda ocorrem alguns tropeços e topadas. Mas logo todos vão ficar uns craques.


Marcelo Coelho é colunista e membro do Conselho Editorial da Folha. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Otavio Frias Filho, que escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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