São Paulo, sábado, 24 de julho de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Montaigne & Gilberto Freyre

RIO DE JANEIRO - Consagrado como o maior intelectual do país, ele costumava freqüentar as reuniões na casa de Álvaro Moreyra, onde se reuniam os mais notórios artistas da época. Noite de chuva braba, havia pouca gente e pouco assunto. Aníbal Machado lembrou-se de convocá-lo para incrementar a conversa com o brilho da prosa famosa. Ligou para ele:
"A turma está esperando. Venha, por favor, não nos deixe na mão!".
A voz enrolada, ronco de gato afagado, ele recusou: "Aníbal, já estou recolhido, lendo o meu Montaigne...está chovendo... não, hoje não...".
Aníbal desligou e avisou Álvaro Moreyra: "Ele já está recolhido... lendo Montaigne...".
O dono da casa reclamou: "Você não soube dar o recado, deixa que eu mesmo ligo". Pegou o telefone: "Meu caro, estamos esperando, você não pode faltar, especialmente hoje...".
A voz mais enrolada ainda, untada de gozo, ele voltou a recusar: "Álvaro... hoje não dá, chove pra burro... estou recolhido, lendo meu Montaigne de todas as noites...".
Álvaro abaixou a voz: "Escute, a turma aqui está fervendo, esperando você. Sabe qual é o assunto? Estamos falando mal do Gilberto Freyre!".
A voz imperial alteou-se: "Nem mais um pio! Me esperem! Daqui a quinze minutos estou aí!".
Pode parecer piada acadêmica, da bela época dos saraus literários e artísticos de tempos meio parnasianos e meio modernistas. Mas aconteceu de verdade e continua acontecendo.
Noite dessas, fui convocado, com menos pompa e urgência, para uma reunião sobre grave questão surgida nos meios artísticos: se os que vendem muito são venais, se os que vendem pouco são geniais, se a cultura nacional está em crise, se o governo deve continuar financiando letras e artes, se o ministro Gilberto Gil deve continuar usando terno e gravata em seus shows ou sua bata incrementada nas reuniões do ministério, temas palpitantes que emocionam as cultas gentes.
Perguntei se a reunião era contra ou a favor tudo isso. Era a favor. Não fui. Nem fiquei lendo Montaigne.


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