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CARLOS HEITOR CONY
Montaigne & Gilberto Freyre
RIO DE JANEIRO - Consagrado como o maior intelectual do país, ele costumava freqüentar as reuniões na casa
de Álvaro Moreyra, onde se reuniam
os mais notórios artistas da época.
Noite de chuva braba, havia pouca
gente e pouco assunto. Aníbal Machado lembrou-se de convocá-lo para
incrementar a conversa com o brilho
da prosa famosa. Ligou para ele:
"A turma está esperando. Venha,
por favor, não nos deixe na mão!".
A voz enrolada, ronco de gato afagado, ele recusou: "Aníbal, já estou
recolhido, lendo o meu Montaigne...está chovendo... não, hoje não...".
Aníbal desligou e avisou Álvaro
Moreyra: "Ele já está recolhido... lendo Montaigne...".
O dono da casa reclamou: "Você
não soube dar o recado, deixa que eu
mesmo ligo". Pegou o telefone: "Meu
caro, estamos esperando, você não
pode faltar, especialmente hoje...".
A voz mais enrolada ainda, untada
de gozo, ele voltou a recusar: "Álvaro... hoje não dá, chove pra burro...
estou recolhido, lendo meu Montaigne de todas as noites...".
Álvaro abaixou a voz: "Escute, a
turma aqui está fervendo, esperando
você. Sabe qual é o assunto? Estamos
falando mal do Gilberto Freyre!".
A voz imperial alteou-se: "Nem
mais um pio! Me esperem! Daqui a
quinze minutos estou aí!".
Pode parecer piada acadêmica, da
bela época dos saraus literários e artísticos de tempos meio parnasianos
e meio modernistas. Mas aconteceu
de verdade e continua acontecendo.
Noite dessas, fui convocado, com
menos pompa e urgência, para uma
reunião sobre grave questão surgida
nos meios artísticos: se os que vendem muito são venais, se os que vendem pouco são geniais, se a cultura
nacional está em crise, se o governo
deve continuar financiando letras e
artes, se o ministro Gilberto Gil deve
continuar usando terno e gravata
em seus shows ou sua bata incrementada nas reuniões do ministério, temas palpitantes que emocionam as
cultas gentes.
Perguntei se a reunião era contra
ou a favor tudo isso. Era a favor. Não
fui. Nem fiquei lendo Montaigne.
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