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TENDÊNCIAS/DEBATES
A Lei do Abate é uma forma de pena de morte?
NÃO
Questão de soberania
JOSÉ VIEGAS
Definitivamente, comparar a
recente regulamentação da lei nº
9.614, de 5 de março de 1998, com a adoção da pena de morte no Brasil é um flagrante equívoco.
Em primeiro lugar, convém esclarecer
que o governo do presidente Lula está
regulamentando uma lei aprovada pelo
Congresso Nacional durante o governo
anterior. A lei de 1998 dispõe que, "esgotados os meios coercitivos legalmente
previstos, a aeronave será classificada
como hostil, ficando sujeita à medida de
destruição". Portanto sua constitucionalidade já foi avaliada e, mais importante, seu texto mereceu a aprovação
das duas Casas do Congresso, evidenciando que estamos diante de uma legítima aspiração da sociedade. Para tornar exeqüível a lei, era necessário regulamentá-la. Foi o que fez o governo.
Essa regulamentação decorre de um
processo cuidadoso, metódico, que envolveu amplas consultas, dentro e fora
do país -um processo que combinou a
completa autonomia nacional de decisão com a consciência de que seu objetivo é o de combater um crime de alcance
transnacional, o narcotráfico. Toco
aqui, aliás, em um ponto essencial: a regulamentação do tiro de destruição refere-se, exclusivamente, a aeronaves
suspeitas de envolvimento com o tráfico de drogas.
Outro ponto fundamental consiste no
alto rigor técnico com que foram delineados os procedimentos cuja observância é imprescindível antes que se
possa chegar à decisão extrema -que,
na realidade, ninguém deseja- da destruição da aeronave suspeita. A medida
de destruição é a última etapa de uma
série de nove procedimentos, clara e detalhadamente definidos, ao cabo dos
quais ficaria patente a determinação da
aeronave suspeita em resistir, de modo
inequívoco, a comandos da autoridade
do Estado brasileiro.
Estaremos, portanto, diante de uma
atuação hostil deliberada de uma aeronave, em que seus tripulantes têm plena
consciência das conseqüências possíveis de seus atos de desrespeito à soberania do país. Só será destruída a aeronave cujo piloto assim o desejar. Repito:
até chegar a isso, terão sido cumpridas
nove etapas, ao longo das quais os responsáveis pela conduta da aeronave terão tido todas as chances de corrigir a
sua ação, ou persistir em sua intenção
hostil de forma deliberada e sistemática.
Creio igualmente relevante destacar
que a regulamentação se pautou não só
por apurados critérios técnicos, mas
também pelo sentido de respeito aos direitos humanos que inspira o povo e o
governo brasileiros. Esse mesmo sentido, como é natural, orientará a implementação da norma. Daí por que não
seria concebível destruir aeronave que
transportasse crianças, necessariamente inocentes. Seria situação comparável
à da atuação da polícia diante de um seqüestrador que utilizasse uma criança
como escudo. A polícia não atiraria. Há
limites -impostos, nesse caso, pela
proteção à vida de inocentes- ao uso
da força. Mas vale lembrar que, mesmo
nessa hipótese, todos os demais procedimentos permanecerão em vigor, inclusive o acompanhamento da aeronave suspeita até que saia do espaço aéreo
brasileiro e sua passagem ao controle
das autoridades do país vizinho.
Convém também reiterar que nenhuma aeronave devidamente registrada
-e muito menos a aviação comercial- estará sujeita a nenhum tipo de
risco e que nenhuma aeronave hostil
poderá ser objeto de tiro de destruição
sobre áreas densamente povoadas e sobre corredores freqüentados pela aviação civil em geral. Dificilmente deixará
de entender a medida que estamos adotando quem tenha acesso a filmes e gravações, como os que o Ministério da Defesa já exibiu publicamente, nos quais
pilotos de aeronaves suspeitas demonstram total desconsideração pelas ordens de aeronaves interceptadoras por
terem a certeza de que, em nenhuma
circunstância, poderiam ser abatidas.
Trata-se, assim, de uma decisão histórica do governo brasileiro. Nosso espaço aéreo não pode continuar a ser violado impunemente por criminosos internacionais que trazem toda a sorte de
prejuízos à sociedade brasileira. Nossa
Força Aérea não pode continuar a ser
desrespeitada em uma de suas atribuições mais nobres, que é a de policiar o
espaço aéreo brasileiro. Por essas razões, concordamos com ilustres juristas, dentre os quais o presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil,
que tem afirmado que, diferentemente
de ser pena de morte, "o objetivo não é
matar, e sim a garantia da soberania".
O Brasil, ao regulamentar o par. 2º do
artigo 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica, não está, evidentemente, desejoso de abater aeronaves. Mas precisa poder contar com instrumentos de dissuasão eficazes contra o tráfico internacional de drogas e suas nefastas conseqüências no aumento da criminalidade
urbana em nosso país.
José Viegas Filho, 61, diplomata, é o ministro da Defesa. Foi embaixador do Brasil em Copenhague (1995-98), Lima (1998-2001), e Moscou
(2001-2002).
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