São Paulo, sábado, 24 de julho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A Lei do Abate é uma forma de pena de morte?

NÃO

Questão de soberania

JOSÉ VIEGAS

Definitivamente, comparar a recente regulamentação da lei nº 9.614, de 5 de março de 1998, com a adoção da pena de morte no Brasil é um flagrante equívoco.
Em primeiro lugar, convém esclarecer que o governo do presidente Lula está regulamentando uma lei aprovada pelo Congresso Nacional durante o governo anterior. A lei de 1998 dispõe que, "esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, a aeronave será classificada como hostil, ficando sujeita à medida de destruição". Portanto sua constitucionalidade já foi avaliada e, mais importante, seu texto mereceu a aprovação das duas Casas do Congresso, evidenciando que estamos diante de uma legítima aspiração da sociedade. Para tornar exeqüível a lei, era necessário regulamentá-la. Foi o que fez o governo.
Essa regulamentação decorre de um processo cuidadoso, metódico, que envolveu amplas consultas, dentro e fora do país -um processo que combinou a completa autonomia nacional de decisão com a consciência de que seu objetivo é o de combater um crime de alcance transnacional, o narcotráfico. Toco aqui, aliás, em um ponto essencial: a regulamentação do tiro de destruição refere-se, exclusivamente, a aeronaves suspeitas de envolvimento com o tráfico de drogas.
Outro ponto fundamental consiste no alto rigor técnico com que foram delineados os procedimentos cuja observância é imprescindível antes que se possa chegar à decisão extrema -que, na realidade, ninguém deseja- da destruição da aeronave suspeita. A medida de destruição é a última etapa de uma série de nove procedimentos, clara e detalhadamente definidos, ao cabo dos quais ficaria patente a determinação da aeronave suspeita em resistir, de modo inequívoco, a comandos da autoridade do Estado brasileiro.
Estaremos, portanto, diante de uma atuação hostil deliberada de uma aeronave, em que seus tripulantes têm plena consciência das conseqüências possíveis de seus atos de desrespeito à soberania do país. Só será destruída a aeronave cujo piloto assim o desejar. Repito: até chegar a isso, terão sido cumpridas nove etapas, ao longo das quais os responsáveis pela conduta da aeronave terão tido todas as chances de corrigir a sua ação, ou persistir em sua intenção hostil de forma deliberada e sistemática.
Creio igualmente relevante destacar que a regulamentação se pautou não só por apurados critérios técnicos, mas também pelo sentido de respeito aos direitos humanos que inspira o povo e o governo brasileiros. Esse mesmo sentido, como é natural, orientará a implementação da norma. Daí por que não seria concebível destruir aeronave que transportasse crianças, necessariamente inocentes. Seria situação comparável à da atuação da polícia diante de um seqüestrador que utilizasse uma criança como escudo. A polícia não atiraria. Há limites -impostos, nesse caso, pela proteção à vida de inocentes- ao uso da força. Mas vale lembrar que, mesmo nessa hipótese, todos os demais procedimentos permanecerão em vigor, inclusive o acompanhamento da aeronave suspeita até que saia do espaço aéreo brasileiro e sua passagem ao controle das autoridades do país vizinho.
Convém também reiterar que nenhuma aeronave devidamente registrada -e muito menos a aviação comercial- estará sujeita a nenhum tipo de risco e que nenhuma aeronave hostil poderá ser objeto de tiro de destruição sobre áreas densamente povoadas e sobre corredores freqüentados pela aviação civil em geral. Dificilmente deixará de entender a medida que estamos adotando quem tenha acesso a filmes e gravações, como os que o Ministério da Defesa já exibiu publicamente, nos quais pilotos de aeronaves suspeitas demonstram total desconsideração pelas ordens de aeronaves interceptadoras por terem a certeza de que, em nenhuma circunstância, poderiam ser abatidas.
Trata-se, assim, de uma decisão histórica do governo brasileiro. Nosso espaço aéreo não pode continuar a ser violado impunemente por criminosos internacionais que trazem toda a sorte de prejuízos à sociedade brasileira. Nossa Força Aérea não pode continuar a ser desrespeitada em uma de suas atribuições mais nobres, que é a de policiar o espaço aéreo brasileiro. Por essas razões, concordamos com ilustres juristas, dentre os quais o presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil, que tem afirmado que, diferentemente de ser pena de morte, "o objetivo não é matar, e sim a garantia da soberania".
O Brasil, ao regulamentar o par. 2º do artigo 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica, não está, evidentemente, desejoso de abater aeronaves. Mas precisa poder contar com instrumentos de dissuasão eficazes contra o tráfico internacional de drogas e suas nefastas conseqüências no aumento da criminalidade urbana em nosso país.


José Viegas Filho, 61, diplomata, é o ministro da Defesa. Foi embaixador do Brasil em Copenhague (1995-98), Lima (1998-2001), e Moscou (2001-2002).


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