São Paulo, sexta-feira, 24 de agosto de 2007

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Reforma política? Ora, direis...

JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO


Talvez devêssemos repensar o papel do Congresso. E o modelo mais razoável para conseguir isso é redefinir o papel de suas duas Casas


NA GRÉCIA antiga, metade das suas 2.000 cidades eram democracias. Atenas, a maior delas, tinha um Poder Legislativo bicameral, em que as decisões do Senado ("Boulê") eram referendadas ou não por assembléias populares. Todos os postos do governo eram escolhidos por sorteio. Igualmente assim, por sorteio, escolhido o presidente de Atenas ("pritonia"), a cada 24 horas.
O poder era provisório. Sempre. Um modelo para os outros povos. Sobretudo porque funcionava bem. Tão grande era sua força moral que a classe dominante romana, em casa, falava só grego. Marco Aurélio escreveu seu diário em grego. E as últimas palavras de Júlio Cesar, ao sentir o frio punhal de Brutus, foram também ditas em grego: "Kai su technon" ("Até tu, meu filho").
Um olhar sobre esse passado talvez valesse ao Brasil de hoje. No Congresso Nacional, ao menos. Para compreender que seu primeiro compromisso deveria ser, como no ideal helênico, o de funcionar bem. Aqui, qualquer projeto de lei, apresentado, por exemplo, na Câmara dos Deputados, passa por uma comissão obrigatória (Comissão de Constituição e Justiça) -duas, se houver questões orçamentárias (Comissão de Finanças e Tributação)- e mais três comissões de mérito. Aprovado, vai ao Senado Federal e roda por outras comissões. Se algo mudar na aprovação, mais uma vez volta o infeliz projeto às comissões da Câmara. E, só depois, a plenário. É muito.
Um sistema bicameral como esse não nos serve. Porque é lento. E também porque não protege a Federação -no tanto em que a Câmara, mesmo em matérias que digam respeito ao pacto federativo, pode recusar projeto que o Senado aprovar. Agora, quando se discute a reforma política, talvez devêssemos repensar o próprio papel do Congresso. E o modelo mais razoável para conseguir isso é redefinir o papel de suas duas Casas, fazendo com que o Senado represente verdadeiramente a Federação, cabendo à Câmara representar a cidadania. Imposto de Renda seria votado apenas no Senado, como Lei de Imprensa, na Câmara, apenas.
Nesse quadro, poderíamos inclusive superar a falsa contradição entre conceitos que, no fundo, são compatíveis -o da representação política e o da unidade da Federação. Em outras palavras, questionar o mito de que, para garantir o pacto federativo, deveríamos assegurar números mínimo e máximo de deputados por Estado.
Um consenso difícil, claro. Não por acaso, todas as Constituições republicanas (salvo a de 1891, art. 27) sempre admitiram essa limitação: em 34 (art. 23), em 37 (art. 48), em 46 (art. 58), em 67 (art. 41), em 69 (art. 39) e, finalmente, em 88 (art. 45). Mas assim se dava apenas por não ser garantida ao Senado a competência exclusiva nos temas que lhe são (ou deveriam ser) próprios. No Senado, cumpre manter número igual de Senadores. Como em Atenas -onde cada uma de suas dez tribos era representada por 50 membros das oligarquias locais.
E a representação na Câmara seria proporcional ao número de habitantes em cada Estado. Novamente, como em Atenas -em que assembléias eram compostas por todos os homens maiores de 19 anos, usualmente entre 10 mil e 15 mil, sem distinções das tribos de onde vinham.
A aceitação desse tema, entre nós, levaria a um resultado curioso. No tanto em que alguns Estados perderiam, enquanto outros, ganhariam -mantido o número atual de deputados. O Nordeste em conjunto, por exemplo, teria um deputado a menos (passando a 150). Enquanto alguns Estados específicos -por exemplo, Acre, Amapá, Rondônia, Roraima e Tocantins-, que, em conjunto, têm 40, passariam a só nove. Indo São Paulo a 110 deputados. Tudo quando mantido o número atual de deputados -embora desejável é que fossem menos. Sem ameaças à Federação -já que representada, esta, pelo Senado.
Um modelo assim faz sentido. Ironicamente -e mesmo de algum modo reproduzindo a experiência da Grécia-, é sobretudo moderno. Evita barganhas. Respeita nossas diferenças regionais. E corresponde ao interesse coletivo -porque o Congresso poderia então funcionar melhor. Ainda é tempo, senhores senadores e deputados. Ainda é tempo.

JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO , 59, pós-graduado pela Universidade Harvard (EUA), é advogado. Foi presidente do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e da Empresa Brasileira de Notícias, além de secretário-geral do Ministério da Justiça (governo Sarney). jp@jpc.com.br

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