São Paulo, terça-feira, 24 de setembro de 2002

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

O Brasil e o mundo

A reorientação do Brasil depende de seu reposicionamento entre as nações. O Brasil quer e espera um governo das forças progressistas -não um governo sectário de esquerda, nem um governo de união geral- em diálogo com todas as vertentes da sociedade brasileira, com a participação dos empresários, dedicado a uma tarefa: retomar o desenvolvimento, com base na redistribuição da renda e na democratização das oportunidades. Uma nova política exterior brasileira não será apenas a expressão desse projeto. Será também uma de suas condições.
Política exterior é política, não simples prática de negociações comerciais, que é sempre insuficiente para atingir mesmo os objetivos econômicos mais estreitos. Ajuda a compor o romance do futuro nacional: uma idéia do país e de seu futuro. Dá, dessa maneira, sentido aos grandes sacrifícios por que ainda passará o povo brasileiro.
A primeira diretriz da política exterior de que precisa o país é reconstruir nossa relação com os Estados Unidos, hoje fundada no medo. O mundo arrisca viver agora momento de radicalização sanguinária da hegemonia americana. Por uma lei das compensações que governam seu espírito, os americanos estarão, depois desse episódio, mais abertos a iniciativas generosas. Ao aprofundar nossas alianças dentro dos Estados Unidos, temos de ampliar o âmbito das negociações a respeito da Alca. A chave é ir além do troca-troca comercial. Trabalhemos para que a extensão do livre comércio no hemisfério preserve a possibilidade de parcerias estratégias entre governos e empresas e institua meios para atenuar as desigualdades nacionais, tal como na União Européia.
A segunda diretriz é liderar os outros países continentais periféricos -a começar pela China e pela Índia- em movimento de defesa de nossos interesses comuns. O interesse comum básico é abrir a ordem mundial a maior diversidade de estratégias de desenvolvimento. Para isso, é preciso construir acertos que reconciliem os interesses vitais de segurança dos Estados Unidos com o desejo universal de rejeitar hegemonias políticas e ideológicas. E insistir em organização do comércio mundial que facilite alternativas de desenvolvimento em vez de sacrificá-las aos dogmas interesseiros de um livre comércio seletivo -livre para os produtos e para o dinheiro, não para as pessoas.
A terceira diretriz é desenvolver ação humanitária de grande porte na África. A África vive calamidade, com o colapso de Estados, a epidemia da Aids e a proliferação da fome. Socorramos a África, distribuindo remédios e engajando em massa nossos jovens e nossos médicos. A iniciativa ecoará em toda a parte, trazendo à tona o melhor da humanidade. E nos ajudará a abraçar o legado africano dentro do Brasil.
A quarta diretriz é voltar a construir o espaço sul-americano, dentro e fora do Mercosul. Não há o que fazer a curto prazo, a não ser defender com vigor os interesses da Argentina. O que mudará o quadro é o lançamento de novo modelo de desenvolvimento brasileiro. Com isso, poderemos avançar na integração da América do Sul, com base em instituições comuns e em estratégia compartilhada de crescimento econômico. É por falta desses requisitos que o Mercosul fraqueja diante dos traumas.
Política exterior é interesse e visão. Não é o mundo que nos impede de praticar política exterior como a que esbocei. É a falta de ação clarividente e audaciosa que sirva ao nosso desejo inconformado de construção nacional.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nessa coluna.

Internet: www.law.harvard.edu/unger



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