São Paulo, quinta-feira, 24 de outubro de 2002

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OTAVIO FRIAS FILHO

Coro dos contentes

Os adversários do senador José Serra -e agora eles são tantos, pois se formam filas para adular o provável vitorioso- culpam o candidato pela derrota. Serra foi ambicioso demais, praticando uma política de terra arrasada no campo governista até conseguir firmar sua candidatura. Não é "simpático" e seu modo de atuação política "desagrega".
São características que podem ter sinal positivo se adotado outro ponto de vista. Não ser "simpático" pode ser um eufemismo para quem não agrada a cada auditório; "desagregar", outro eufemismo para quem não fez acordos que abraçam desde a direita nordestina até o MST. Mas é duvidoso que um candidato "melhor" pudesse obter resultado diferente.
Foi somente depois de Roseana e Ciro terem sido pulverizados que o eleitorado desistiu de procurar uma terceira via que lhe permitisse escapar do dilema entre governo e Lula. Desgastado depois de oito anos, tendo levado o país às portas da bancarrota quando os benefícios do real já envelhecem na memória, os tucanos (agora se vê) não tinham muita chance.
De outro lado, a lenta decantação do PT como partido social-democrático foi apressada por uma política de alianças sem outro critério exceto o de vencer a todo custo, ao mesmo tempo em que o candidato passava por uma profunda cirurgia publicitária. Nessa plástica, os traços que o eleitor imaginava ver em Roseana foram transferidos a Lula.
Toda eleição acumula novo aprendizado coletivo sobre as anteriores. Os meios de esclarecimento se desenvolvem em paralelo, no entanto, com os meios de ilusão, que também melhoram. A vocação publicitária da política contemporânea se fixa cada vez mais. E seu programa é o mesmo para todos os clientes: despolitizar a campanha e glamourizar o candidato.
A embalagem pode ser nova, mas o fenômeno não. Conforme a cirurgia petista surtia seus efeitos e a economia fragilizava ainda mais o governo, de repente o eleitorado -tão flutuante no começo, embora agora se compreenda melhor o percurso de suas cismas- fixou-se em Lula, gerando essa onda que nada mais parece capaz de deter.
Num país de tradição sebastianista, reaparece de tempos em tempos uma dessas figuras de demiurgo (cujo modelo local é Getúlio), em torno da qual se forma um consenso irrestrito, que os poderosos passam a assediar com seus apoios e que os entusiastas consideram acima de críticas. Para ficar no período recente, foi assim com Tancredo e com Collor.
O caso de Lula tem uma dimensão simbólica mais profunda do que as desses dois precursores, pois ele incorpora o sentimento de injustiça ante a desigualdade abissal que separa as classes no país. É um paradoxo, talvez fecundo, que esteja a um passo do poder num momento em que a economia praticamente impõe um governo de união nacional.
Na fase de ascenso desses demiurgos, antes que as decepções inevitáveis, sobretudo num governo sem margem de manobra, devolvam as expectativas a nível mais realista, toda crítica é impatriótica, toda ressalva é impertinente. Mas há instituições -o Ministério Público, a imprensa- cuja função deveria ser desafinar o coro dos contentes.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.

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