São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A alta complexidade da saúde no Brasil

CLAUDIO LOTTENBERG

O recente lançamento do BrasilCord -rede pública de bancos de sangue de cordão umbilical e placentário- pelo Ministério da Saúde coloca o Brasil entre os países mais avançados na preparação para aplicações terapêuticas das células progenitoras hematopoiéticas, mais conhecidas como células-tronco. Uma das mais importantes descobertas da ciência nos últimos anos, as células-tronco impressionam pelo enorme potencial regenerativo que apresentam.


Vale a pena ressaltar o caráter de universalidade dos bancos públicos de sangue de cordão umbilical


Além de triplicar a probabilidade de o paciente encontrar um doador compatível, o BrasilCord deverá contribuir para uma redução substancial de custo da procura de um doador e reduzir a um décimo do valor os US$ 23 mil gastos, em média, na busca de um cordão em bancos internacionais. E, para quem se preocupa com a democratização dos serviços de saúde, vale a pena ressaltar o caráter de universalidade dos bancos públicos de sangue de cordão umbilical. A partir do momento em que o material é doado e armazenado, está à disposição de qualquer paciente que venha a precisar de células-tronco para algum tratamento.
Ao mesmo tempo em que apresenta uma solução para colocar o país na ponta da terapia celular, o Ministério da Saúde desenvolve uma campanha de combate à tuberculose. Segundo dados do próprio ministério, cerca de 6.000 pessoas morrem todos os anos no país em decorrência da tuberculose.
As duas iniciativas trazem à tona a questão das nossas contradições. O Brasil que tem o maior sistema público de transplantes do mundo, responsável por 92% de todos os procedimentos realizados no país e superado em números absolutos apenas pelos Estados Unidos, é o mesmo Brasil onde a taxa de mortalidade infantil para cada mil crianças nascidas vivas, quando comparada com a dos outros países da América do Sul, só fica abaixo da Bolívia.
Essa contradição sugere uma pergunta inevitável. Os quase US$ 10 milhões previstos para a implantação do BrasilCord não seriam mais bem aplicados se fossem destinados a melhorar as condições de atendimento de milhares de pacientes jogados sobre macas nos corredores de hospitais à espera de um leito numa enfermaria?
Não resta dúvida de que o problema das carências básicas deve estar entre as prioridades dos administradores da saúde.
A saúde hoje é algo muito complexo dentro da sociedade. As doenças, os diagnósticos, as terapias, os medicamentos, os sistemas de atendimento e o financiamento de tudo isso envolvem alta complexidade. Não se pode mais olhar a medicina apenas com a visão romântica do médico de jaleco branco com seu estetoscópio em volta do pescoço. Diagnósticos agora são feitos com a ajuda de equipamentos de imagem por ressonância magnética, ou PET-Scan, que custam milhões de dólares e exigem equipes especializadas altamente qualificadas para operá-los. Foi-se o tempo em que somente vírus e bactérias punham em risco a humanidade. Câncer, doenças cardiovasculares e acidentes vasculares cerebrais constituem uma epidemia que encabeça a lista de causas de morte no mundo. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, elas provocam a morte de 17 milhões de pessoas por ano -quase um terço de todos os óbitos no mundo.
O novo cenário que vai se compondo exige que todos os envolvidos na estrutura de prestação de serviços de saúde à população entendam a sua complexidade. As demandas cresceram, os recursos públicos não se multiplicaram na escala necessária e, agora, alguns paradigmas precisam ser revistos.
Para muitos pode soar estranho que o Albert Einstein, por exemplo, seja um hospital filantrópico e também um hospital de alta complexidade. É que a natureza das coisas mudou, e quem pretende contribuir para ou participa do desenvolvimento da saúde no Brasil precisa ter claro que se trata de algo complexo. Em face disso, nada melhor do que o aproveitamento das competências individuais de cada instituição no sentido de fazê-las atender, com oferta ágil e imediata, as demandas da sociedade como um todo.
Não fosse assim, quem sabe hoje não responderíamos por cerca de 30% dos transplantes hepáticos realizados pelo SUS em nosso meio; ou quem sabe não seríamos responsáveis por um dos ativos grupos de programa da saúde que atendem cerca de 50 mil paulistanos; não teríamos treinado 500 profissionais do Sistema de Atendimento Médico de Urgência de São Paulo; não teríamos atuado dentro do Programa de Hepatite da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo; não estaríamos realizando, em conjunto com a Secretaria da Justiça; cerca de 400 exames de paternidade a cada mês ou abraçando a cidade de Itinga dentro do Fome Zero -e isso sem falar no programa consagrado na comunidade de Paraisópolis, além do Programa Olho no Olho, prestes a se iniciar.
O projeto BrasilCord é mais uma iniciativa entre a estrutura pública e a estrutura privada -a bem da verdade, um sinal de amadurecimento- que tem por obrigação encontrar uma resposta para a saúde enquanto um verdadeiro direito social.

Claudio Lottenberg, 43, doutor em oftalmologia pela Escola Paulista de Medicina (atual Unifesp), é presidente da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Hospital Albert Einstein.


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