São Paulo, terça-feira, 24 de outubro de 2006

Próximo Texto | Índice

Proposta absurda

A PF não pode se atar ao interesse de governantes, mas daí não segue que deva ser organização à parte do Executivo

É ESCANDALOSA a proposta de emenda constitucional (PEC) nš 37, apresentada pelo senador Valmir Amaral (PTB-DF), que propõe autonomia para a Polícia Federal (PF). "Autonomia", entretanto, é um termo suave demais para descrever os superpoderes que a PEC pretende atribuir à instituição e a seus delegados.
Para começar, a PF, doravante denominada Gabinete da Polícia Federal, seria galgada à condição de ministério. Mais do que isso, contaria com autonomia funcional, administrativa, financeira e orçamentária, prerrogativas na maioria das vezes reservadas a Poderes autônomos.
É evidente que a PF, como qualquer polícia, não pode subordinar-se aos interesses dos governantes de ocasião. Precisa ter autonomia para investigar e atuar mesmo que contra os desejos dos poderosos. É justamente aí que reside a diferença entre uma polícia de Estado e uma guarda pretoriana. Daí não segue, entretanto, que a PF deva ser uma organização acima ou à parte do Executivo.
No sistema de freios e contrapesos que caracteriza as democracias, aqueles que detêm a prerrogativa de fazer uso legítimo da violência precisam estar sob o controle firme de um Poder. Pela tradição brasileira, é o Executivo, com a intermediação do Judiciário e sob a fiscalização do Legislativo.
Não é, porém, apenas contra a lógica institucional que a PEC atenta. Ela também configura grave ameaça a direitos e garantias individuais, ao atribuir a delegados da PF o poder de requisitar, "no interesse da investigação criminal", informações cadastrais públicas ou privadas de qualquer natureza, incluindo registros de ligações telefônicas, conexões na internet e movimentações financeiras. Pior, a redação da proposta sugere que a "requisição" independe da autorização do Poder Judiciário.
Se tal norma for aprovada e prevalecer a interpretação segundo a qual não há necessidade de a Justiça manifestar-se, será a morte do Estado de Direito no Brasil. Delegados da PF tudo poderão contra qualquer cidadão, que se verá privado dos meios para defender-se.
Como se isso ainda fosse pouco, o projeto de emenda à Carta concede mais algumas regalias aos delegados da PF, como foro especial no Tribunal Regional Federal e o direito de só ser preso por ordem judicial ou flagrante delito de crime inafiançável. Ou seja, não será preso nem se espancar um desafeto em praça pública e à luz do dia.
É claro que delegados, bem como servidores de várias outras carreiras típicas de Estado, precisam ser protegidos contra demissões arbitrárias, transferências políticas ou processos intimidatórios. Tais proteções, porém, já existem. Pode-se até discutir ampliá-las mais um pouco, se houver consenso de que são insuficientes. O que não faz sentido, como parece querer a PEC, é estendê-las a ponto de macular a própria igualdade republicana dos cidadãos.
Se há um serviço que o Legislativo pode prestar à sociedade é sepultar de vez esse verdadeiro ataque que a proposta desfere contra a cidadania.


Próximo Texto: Editoriais: Finanças paulistas

Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.