São Paulo, domingo, 24 de novembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Esquerdas e direitas latino-americanas

JULIO MARÍA SANGUINETTI

Não há nada mais perigoso em política do que as simplificações. Mas nós as sofremos todos os dias, e por isso mesmo há quem tenha interpretado a vitória de Uribe na Colômbia como uma simples vitória da direita, e agora a de Lula no Brasil como um clamoroso desvio para a esquerda.
As questões são mais complexas do que isso. Começando pela Colômbia, é bom deixar claro que Uribe defendeu uma linha firme na luta contra a guerrilha, mas nem por isso representa uma direita reacionária ou algo do gênero. Pelo contrário, é um homem formado no histórico Partido Liberal, foi governante sensível à temática social e nos primeiros meses de governo já deixou clara sua capacidade para administrar seu desejo de afirmação do Estado com ponderação e equilíbrio.
Do mesmo modo, não devemos identificar Sánchez de Lozada, na Bolívia, com uma simples direita neoliberal. Tendo sido sempre um partidário do liberalismo econômico clássico, seus anos de ministro e presidente o definiram como um homem de grande cultura, sólida formação de governo e, por isso, afeito às nuanças da vida política.
Mais complexa é a situação do Equador. O que vemos ali é um enfraquecimento dos partidos políticos, algo que sempre é perigoso, e uma ascensão do populismo que projeta um militar e um empresário para o segundo turno, deixando no caminho as figuras de maior tradição política, como o ex-presidente Rodrigo Borja. O que pode advir com esses candidatos? Não está muito definido. A única coisa clara hoje é que as atitudes deles rompem com a tradição partidária e que suas definições de princípios ainda estão confusas.


A América Latina não está sob o efeito de nenhuma onda ideológica em um sentido ou em outro


Trocando de calçada, topamos com Lula no Brasil. Primeiro ele escolheu um vice-presidente liberal, multimilionário, dono de uma empresa enorme e ligado às igrejas evangélicas. Em seguida, apoiou o presidente Fernando Henrique Cardoso em seu acordo com o FMI. Mais tarde, reconheceu conquistas até mesmo do governo militar, pelo fato de ter consolidado a burguesia industrial brasileira, que, por sua vez, possibilitou a formação de um sindicalismo também nacional, do qual o PT é filho.
Finalmente, e isso foi fundamental, ele conseguiu o apoio das figuras mais emblemáticas da direita e do centro político: os ex-presidentes José Sarney e Itamar Franco e o velho caudilho baiano Antonio Carlos Magalhães, que sobreviveu a todos os prognósticos da acidentada vida política brasileira nos últimos 40 anos. Tanto é verdade que tudo isso é um triunfo pessoal de Lula, e não do PT, que este não conquistou nenhum governo estadual importante, tendo inclusive perdido o que tinha, o do Rio Grande de Sul.
Lula se deslocou para o centro, mas, sobretudo, se distanciou claramente dos radicalismos do passado, estendendo pontes até setores que, até pouco tempo atrás, teria sido impensável imaginar que pudessem apoiá-lo.
De tudo isso conclui-se que a América Latina não está sob o efeito de nenhuma onda ideológica em um sentido ou em outro. Ela padece, isso sim, de uma situação econômica recessiva, uma fadiga dos ajustes macroeconômicos e um enfraquecimento dos partidos políticos que tornou-se explosivo em países como Venezuela e Argentina. Para enfrentar esse quadro tão difícil aparece o velho dilema: democracia responsável ou populismo demagógico. Estes, sim, constituem dois campos bem distintos.
A democracia responsável pode ser de tom social-democrata, como com Lagos, no Chile, ou Fernando Henrique, no Brasil; ou pode ser de entonação mais liberal, com Uribe, na Colômbia, ou Sánchez de Lozada, na Bolívia; mas não deixa de ser um capítulo daquilo que já foi chamado "República do Centro". Aqui entra em campo a maior inclinação de uns para a liberdade e a ordem, ou de outros em direção aos indicadores sociais, mas todos atuando dentro de parâmetros gerais segundo os quais ninguém discute a necessidade do equilíbrio macroeconômico, das vantagens de uma economia relativamente aberta e o imperativo de um Estado em constante reforma.
O debate, portanto, não é entre esquerda ou direita, entendidas como termos europeus. É o confronto entre a visão responsável do Estado e o populismo, esse fantasma latino-americano que reaparece quando nuvens escuras surgem no horizonte. Essencialmente demagógico, apela para os aplausos populares em nome de causas legítimas, mas cujo sustento e viabilidade não se examinam. Tudo acontece por obra da vontade, de invocações à sensibilidade ou até mesmo de ""efeitos especiais" fornecidos pela multimídia moderna para construir imagens de figuras televisivas.
Foi assim que nasceram as hiperinflações e os confrontos como aquele que hoje divide a Venezuela. Em alguns casos, começou com concessões aos sindicatos, em outros, com protestos pedindo a ""saída de todos". E assim surgiram, do nada, os Fujimori e os Collor de Melo. O resultado sempre foi, cedo ou tarde, a instabilidade econômica e política.
A preocupação, portanto, não deveria ser com quem representa partidos, com opções matizadas à esquerda ou à direita, mas, pelo contrário, com aqueles que não representam nada além deles mesmos, embora invoquem as massas pela televisão e lhes prometam governos fortes e mágicos. Depois da onda democratizante dos anos 80 e do reformismo econômico dos 90, os tempos difíceis voltaram. A esperança é que ainda haja lugar para a razão e que esses ventos não se transformem em tempestades.

Julio María Sanguinetti Coirolo, 66, advogado e jornalista, foi presidente da República Oriental do Uruguai (1985-1990 e 1995-2000).

Tradução de Clara Allain


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